Arnaldo Chuster[1]
Freud, numa entrevista ao New York Times (1926) ressaltou, em vários momentos, a constante contribuição da arte, da poesia, da literatura e da filosofia para a psicanálise, sendo imensurável sua recíproca influência nessas áreas. Esse fato por si só que destaco entre tantos justifica plenamente a homenagem à semana de Arte Moderna de 1922, feita hoje pela Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, a qual agradeço a honra do convite para representa-la nessa ocasião.
Entretanto, entendo que minha contribuição como psicanalista é limitada dentro do universo e da importância do tema, e lamento não poder discutir nos mesmos termos dos ilustres participantes especialistas no assunto.
No ponto de partida, já me encontro com a dificuldade para avaliar qual poderia ter sido a influência direta da psicanálise na Semana de Arte Moderna, e vice-versa, sobretudo, por ter ocorrido numa época (13/18 fevereiro de 1922) em que era praticamente desconhecida aqui no Brasil.
Todavia, houve um antes da Semana de Arte Moderna, quando já existiam em muitos países, incontáveis artistas, direta ou indiretamente influenciados pela psicanálise, não sendo difícil conjecturar que os artistas brasileiros, de algum modo, tiveram contato com essa produção internacional, em níveis diversos de profundidade. Entretanto, não encontrei referências sobre essa influência.
Em termos históricos, apesar de termos tido alguns precursores, como o psiquiatra Juliano Moreira[2] (1900), que citou artigos científicos de Freud, quando a prática da psicanálise nem mesmo em Viena[3] havia sido bem estabelecida, o real pioneiro da psicanálise no Brasil foi Durval Marcondes, formado pela Faculdade de Medicina de São Paulo em 1924. Como médico psiquiatra, erudito e humanista, introduziu em 1925, as ideias da psicanálise na atividade clínica brasileira.
Em 1927, Durval Marcondes escreveu a Freud comunicando a fundação, junto com Franco da Rocha, da Sociedade Brasileira de Psicanálise - a primeira da América Latina, que se transformou em junho de 1944 no Grupo Psicanalítico de São Paulo.
Parece então que São Paulo teve a função de ser a vanguarda da psicanálise no Brasil, assim como a Semana de Arte Moderna de 1922 cinco anos antes mostrara a vanguarda de nossa intelectualidade. Espero que algum dos participantes da mesa possa explicar porque esses fatos ocorreram em um contexto regional tão específico, ou possa desfazer o que pode ser mais um mito bairrista brasileiro.
Mas, antes que eu me perca em polêmicas históricas, fora do meu alcance, vou me expressar em termos psicanalíticos assinalando que a Semana de Arte Moderna de 1922 é uma cesura. Note-se que coloco no tempo presente, pois desejo com essa forma expressar sua atualidade.
O termo é proveniente de uma citação de Freud num artigo de 1926, Inibição, Sintoma e Angustia. Ele disse: Há muito mais continuidade entre a vida uterina e a primeira infância do que a impressionante cesura do nascimento nos permite acreditar.
A frase, exemplar da influência do romantismo alemão na escrita de Freud, foi um “recado” para Otto Rank, um analista austríaco do grupo de pioneiros, que pretendia localizar a origem de todos conflitos psíquicos no trauma do nascimento. Freud, com a frase, questionava a posição ontológica de Rank, sutilmente lhe solicitando uma posição epistemológica.
Contudo, de qualquer forma, a alusão ao nascimento não deixa de ser uma alusão a algo perturbador, que causa um profundo abalo, e que pode ser chamado de mudança catastrófica.
Entenda-se aqui que catástrofe não significa desastre, mas uma transformação com mudança significativa de direção, de estados mentais e de propósitos. Podemos dizer que é uma mudança que faz sair da zona de conforto habitual, ao expor uma situação limite entre fazer escolhas ou se deixar levar pelo acaso, ou, dito de outra forma, entre modificar a realidade ou fugir dela.
Podemos dizer_ correndo o risco da generalização_ que se uma pessoa não toma as rédeas das mudanças e escolhas em sua vida, a vida inevitavelmente muda essa pessoa, e sempre para pior.
Não se trata_ ainda que possa parecer_ de uma ameaçadora advertência, mas de uma proposta para pensar, a partir do campo que é o próprio pensar se apresentando como experiência analítica. Nesse campo, questões éticas fundamentais como responsabilidade social, verbalização e publicação são colocadas em evidência.
O pensar nunca ocorre espontaneamente como ocorrem os pensamentos. Para pensar não basta querer. É preciso aprender a pensar. E só se aprende a pensar esperando o inesperado que exige tolerar a liberdade que emerge. Nesse campo de incertezas, para nos conduzir a segurança do pensar a paciência é quase tudo que necessitamos.
Posso nomear a base dessa experiência de Princípio ético-estético da Incerteza. O Princípio nos informa que o inesperado da experiência a surpresa é sempre um encontro com graus distintos de turbulência emocional que, por sua vez, coloca em causa ou em cheque nossos modos habituais de pensar.
A incerteza nos informa que não podemos observar o todo de uma experiência, e também que o observador altera o fato observado, ou, melhor dizendo todas as observações são sempre incompletas e aproximativas. Por outro lado, o sentido da incompletude é o da criação, que embora tenha uma indeterminação no seu conjunto, colocará novas determinações através de nossa imaginação.
A imaginação é o que nos permite criar o universo de significados, estabelecer relações simbólicas, ou seja, apresentarmos alguma coisa, da qual sem a imaginação não poderíamos nada dizer e, sem a qual, não poderíamos nada saber. A imaginação começa com a captação de ritmos e da sensorialidade, de forma radical, na vida intrauterina.
Toda cesura_ criação _ traz turbulência que nos põe em contato com algo ainda mais surpreendente que é a misteriosa existência de um pensamento verdadeiro, mas sendo esse sempre um pensamento descentrado de alguém, não tem pensador, e nos mostra que não pensamos naturalmente, ou seja, somos forçados a pensar para dar conta dos pensamentos que nos assaltam a qualquer momento.
Como pensar hoje naquela incrível e imaginativa semana de 1922?
Os termos arte e história estão ligados na pergunta. A história posso conhecer pelo registro dos fatos, mas não posso saber o que realmente aquelas pessoas estavam vendo ou sentindo para fazer o movimento aflorar. Meu sentimento diz que foi um movimento corajoso que inspirou muita criatividade. Talvez, até hoje, faça isso. Entretanto, coragem não é sinônimo de ser destemido, significa a coragem e a responsabilidade de fazer uma escolha pela modernidade, que iria gerar e buscar mais modernidade.
A modernidade exige de nós criatividade para que dela tenhamos experiência. Isso é válido para qualquer movimento, qualquer manifesto, e constitui uma meia resposta para o que é a psicanálise: só a experimentamos na medida em que a criamos em cada sessão.
A psicanálise mostra também que existe algo_ um mistério constante_ que resiste a historicização, algo que está sempre criando uma cesura, que pensada desta forma é uma entidade infinitamente plástica, sempre surgindo onde menos se espera. Deste modo, entre hoje e aquela semana, temos um ponto comum: o mistério que nos leva a criar.
A psicanálise não é tarefa para historiadores, mas para quem duvida da história, pois como psicanalista entendo que a história é a história das interpretações, das narrativas, dos pontos de vista das minorias. Todos tentam lidar com alguma cesura que nos é dada a observar. Deste modo, o psicanalista entende que qualquer que seja a leitura existe sempre um núcleo inefável e inacessível, que não contém significação alguma, qualquer que seja a “verdade” da interpretação.
A cesura de 1922 não é mais a nossa realidade, e qualquer que seja a proximidade ou mesmo intimidade com o assunto, nenhum saber, nenhum ethos, nenhuma historicidade nos restitui aquele momento. Não temos a possibilidade de vivê-lo aqui e agora, como uma função de nossa vida presente, mas temos como tomar as rédeas do pensar e observar o que acontece; talvez sentir algo do vigor daquele momento infinitamente plástico.
Por falar em Infinitude, o termo cesura é proveniente da poesia com o sentido de pausa no interior de um verso, porém é uma pausa que separa e liga ao mesmo tempo, e esse significado foi extensamente desenvolvido pelo psicanalista britânico Wilfred Bion. A importância de uma pausa é imensa em qualquer atividade criativa.
Por exemplo, existem ocasiões na clínica psicanalítica nas quais o paciente menciona, como que fazendo uma pausa, e de uma forma muito fugaz, alguma ansiedade, medo, ou um fato físico tal como ficar enrubescido ou pálido, ou uma sudorese nas mãos, como se nada demais tivesse ocorrendo. Todavia, o psicanalista pode pensar que o paciente não tem outra forma de expressar sentimentos que tem intensidade, extensão temporal e uma forte capacidade obstrutiva do pensar, e que não podem ser comparados com aqueles sentimentos que a maioria das pessoas encara como normais ou triviais. Incontáveis pessoas passam uma vida sem resposta para aquele sofrimento até chegar num processo analítico.
Analogamente, o paciente pode expressar um medo do futuro que tem tantas características do passado que supostamente não poderia se lembrar, nem poderia se lembrar do futuro porque ainda não aconteceu. Todavia, se saímos dessa forma de pensar do “não pode” e nos movermos para pensar na complexidade do campo, veremos que esses elementos, tão fracamente manifestos, podem na verdade ser muito poderosos, mas são minimizados ou ignorados pelo que conhecemos como determinismo psíquico.
W.R. Bion, introduzindo o pensar complexo na psicanálise, sugeriu que podemos imaginar que existem ideias que não podem ser mais vigorosamente expressas porque estão enterradas no futuro que ainda não aconteceu, ou enterradas no passado que está esquecido, e que dificilmente se pode dizer que pertencem ao que chamamos de pensamento. São ideias ainda intrauterinas apesar do indivíduo estar distante do evento gerador de 40 semanas. Entretanto, pensando em termos complexos, não podemos dizer que elas não existem. Usando uma metáfora, penso numa rede de pesca que só pega peixes acima do tamanho dos buracos da rede. Entretanto, isso não significa que no mar não existem peixes de menor tamanho ou tão grandes que a rede não consegue pegar.
Sem o uso da imaginação jamais poderemos pensar que existem níveis de pensamento pré-natal que tem relação com o pensamento pós-natal. Este fato tem para a psicanálise uma imensa ligação com os processos de criatividade em geral, e me permitem neste ponto, parafraseando Freud e Bion, afirmar: Há muito mais continuidade entre o que havia antes e o depois da semana de arte moderna do que a impressionante cesura que ela causou nos permite acreditar.
Quais foram as pressões que a produziram e o que ela pôde prever? Quais foram as pressões pré-natais? O que foi o pré-natal da semana de arte moderna, e como seus elementos cresceram até o dia de hoje[4]?
Vou dar um exemplo pouco sofisticado do que seria uma experiência “pré-natal”. Se aplicarmos uma pressão no globo ocular veremos pontos brilhantes como resposta do nervo ótico. Se isso acontece por que não podemos pensar que qualquer dos nossos sentidos (olfato, audição, tato, movimento) responde sensivelmente a variações de pressão no líquido amniótico causadas por intrusões rítmicas provenientes do mundo externo? Por que não podemos pensar que o desenvolvimento embrionário sofre pressões constantes provenientes da mãe, cujos ritmos internos se misturam com os do feto, e que esta mãe sofre pressões externas provenientes do seu meio cultural?
Tais pressões complexas, mais tarde na vida podem ser chamadas de preferências, idiossincrasias, personalidade, singularidade, estilo. Claro que a psicanálise também considera que essas características se formaram por pressões emocionais e simbólicas do encontro pós-natal com a mãe, com o casal de pais, com a família, e sucessivamente com outras figuras do meio ambiente, as quais tem sempre a Cultura como pano de fundo.
Os símbolos têm uma atividade sexual intensa, os símbolos heterônomos (que vem do exterior, da cultura, de outras culturas) copulam com símbolos autônomos (que vem de dentro, que são de casa, que são transformações pessoais) e geram ideias transitivas que sustentam pressões ou tentam se livrar delas. Essa relação entre símbolos é antropofágica, provocada por um processo de sedução entre as ideias que vem de fora e as que surgiram aqui dentro, elas se encontram até que uma penetra a outra, e acabam falando uma outra língua, que fornece um terceiro, mas que guarda algo que é o mesmo de sempre: o mistério.
O papel do analista inevitavelmente envolve o uso de ideias transitivas. O analisando, da mesma forma, está tentando formular uma experiência da qual está consciente através da cadeia de associações-livres. Essa cadeia se conecta a um outro meio do qual ele não está consciente, mas inconsciente. Todas as ideias que formulo como psicanalista são transitivas ou transitórias, sem nenhuma intenção de classificação, avaliação, ou diagnóstico, pois são ideias que expressam um ser humano vivo, inteiro, mudando o tempo todo e conversando diretamente com outro ser humano que muda o tempo todo.
Com tantas variáveis e incertezas, dar uma interpretação significa que o analista tem que ser capaz de verbalizar o que foi produzido por seus sentimentos, sua intuição, e suas reações primitivas ao que está sendo dito pelo analisando. A eficácia dessa formulação tem de ser semelhante à de um ato físico.
O ato semelhante ao físico é o ato psicanalítico, e embora claramente poiético, não é poesia, pois precisa ter um critério epistemológico, que Bion descreveu como uma formulação verbal que integra três áreas, mitos, sentidos e paixões, que fornecem a percepção do que chamou de objeto psicanalítico. Existe uma técnica para isso.
Ou seja, aquilo que para o artista poderia ser uma tela em branco, para o escritor um papel sem nada escrito, uma pauta musical vazia para o compositor, para o psicanalista é o ato que leva à descoberta do objeto psicanalítico. Em todos, nada acontece sem o princípio apofático, ou seja, a empatia suprema, a capacidade negativa, que veio da arte, melhor dizendo, da poesia.
Por exemplo, enquanto método, a arte através de um poeta como T.S.Elliot nos ensina que se vamos atrás de um objeto nos valendo da memória que temos dele, com muita probabilidade deixaremos de perceber as modificações que ele sofreu dentro de nós. O poeta Keats nos ensina que precisamos usar a capacidade negativa, que fez de Shakespeare um Homem de êxito na literatura.
Esses atos e métodos artísticos ocorrem em qualquer produção de uma obra de arte, com qualquer texto ou livro que por alguma necessidade nos arrasta a uma releitura, ou uma pesquisa, ou uma inspiração. Tais atos e métodos também ocorrem nas sessões de análise.
Por exemplo, o texto que estava dentro de nós, como memória, como a sessão de ontem, impede que se possa colocar outro texto disponível à nossa experiência. Mas se deliberadamente esquecermos o que havíamos lido, outro texto aparece. O texto original será sempre a experiência presente. Por isso, Bion sugeriu que devemos procurar trabalhar sem memória e sem desejo, ou com capacidade negativa.
Essa proposição traz também a questão semelhante ao processo de diferenciar, por exemplo, um quadro verdadeiro de um falso. Me refiro ao fato de o passado conhecido ser falso ou irrelevante para a experiência de hoje.
Freud, certa vez, citou um historiador de arte, Lermolieff, que recomendava desviar o olhar da impressão de conjunto, ou das linhas gerais de um quadro, e se pusesse em relevo a importância dos detalhes da sessão.
Detalhes como a representação das unhas das mãos, dos lóbulos das orelhas, das aureolas dos seios e de outras coisas deste tipo que o copista não tem capacidade para ver e imitar e que, no entanto, todo artista verdadeiro executa de uma maneira que o caracteriza.
Freud sublinha o parentesco deste procedimento na arte com a técnica da psicanálise: “ Também ela está habituada a intuir coisas secretas e ocultas a partir dos traços subestimados, a partir, do refugo, dos escombros, da observação”.
Porém, apesar da imensa contribuição da arte, o campo analítico certamente não é unificável por teorias e nem pela arte.
Deste modo, observar em psicanálise significa ressalvar, não ter soluções harmônicas, suaves e equilibradas.
Fazemos, como psicanalistas, sempre uma ressalva para questões como admiração, respeito, evidência, intuição – e tudo que o iluminismo de Freud nos legou, sem nunca deixarmos de tê-las. O respeito à vida está intrinsicamente ligado ao respeito à verdade, e como a vida muda o tempo todo, o analista precisa ser capaz de encontrar uma tela em branco, onde se mantém observando a falha do discurso, o detalhe que aí aparece.
O analista não pode interpretar sem ressalvas as “visões” que um feto teve quando submetido a pressões intrauterinas. Existe algum método de comunicação que seja suficientemente penetrante para atravessar a cesura na direção do pensamento consciente pós-natal e ir de volta para o pré-natal no qual pensamentos e ideias tem sua contrapartida em “tempos” ou “níveis” da mente nos quais não são ainda pensamentos ou ideias?
Essa penetração precisa ser eficaz nas duas direções. É fácil, psicanaliticamente falando, criar uma metáfora para ilustrar essa situação dizendo que é como penetrar no interior de uma mulher numa relação sexual, ou sair lá de dentro como num nascimento. Ocupamos duas posições e um universo infinito de possibilidades transitórias entre elas.
Todavia, essa ilustração é primitiva e faz uma generalização, tornando muito difícil ver o que pode ser dito num momento específico. Este é o problema do analista: não fazer uma cópia do quadro, pois tem que fazer o original sob a pressão do momento.
O analista busca para isso continuamente a palavra exata. Mas isso não significa uma preocupação obsessiva, pois felizmente temos dicionários que podem fornecer significados, e, afortunadamente, eles sempre dão mais de um. Viva a polissemia, salve a instabilidade das palavras, e a mutabilidade da linguagem comum. A “palavra exata” é a palavra que faz justiça ao momento, revelando a experiência emocional, se transforma em linguagem psicanaliticamente bem sucedida.
Buscar a palavra exata para o momento foi o que a Semana de Arte Moderna de 1922 parece ter feito, e este parece ser um de seus legados.
Existem dificuldades análogas às associadas com a cesura do nascimento. Uma cesura similar parece existir entre habitantes de Portugal e do Brasil. Algumas dessas semelhanças/diferenças são espetaculares e marcantes, particularmente no tempo. Todavia, sabemos que existem, cientistas, escritores, poetas, e alguns indivíduos chamados de místicos, que se expressam em termos muito semelhantes embora separados por centenas e as vezes milhares de anos. Como vamos penetrar nesse obstáculo temporal, nessa cesura?
Não é de bom tom contar uma anedota sobre as relações Leste e Oeste, mas Tupy or not Tupy, certa vez brasileiramente perguntei ao recepcionista do hotel em Lisboa se dava para ir a pé ao endereço X. A resposta, com indisfarçada indignação, foi: Ora, pois, claro, a rua é livre para se caminhar. Onde já se viu não poder andar na rua...
Diante disso, não sem razão, em outro dia da mesma viagem, um motorista de taxi, ao ser perguntado se poderíamos ir para o Estoril pela praia, respondeu, pela praia é proibido entrar com o carro, só podemos ir pela rua mesmo...
Ora, pois, viva a antropofagia que encontra soluções imaginativas para a convivência Leste e Oeste.
O fato é que enquanto houverem leituras diferentes para o mesmo fato, ninguém _nunca_ terá a última palavra. O que se espera de uma análise bem sucedida é que ela tenha um começo sem fim, que seja uma memória do futuro, um legado que vem lá do futuro moderno a nossa frente, sem o que a vida não é uma vida que vale a pena ser vivida.
Em 1922, Freud escreveu um pequeno ensaio: A cabeça da Medusa. Diz Freud que a horripilante cabeça decapitada pode ser facilmente interpretada pela equação decapitar=castrar. O terror produzido pela Medusa decapitada é um temor de castração.
Os cabelos da Medusa são frequentemente representados nas obras de arte sob a forma de serpentes, o que aponta para o complexo de castração. Para Freud, constitui fato digno de nota que, por mais assustadoras que possam ser em si mesmas, na realidade a multiplicidade de serpentes serve como mitigação do horror, por substituir o pênis único, cuja ausência é a causa do horror.
Isso é uma confirmação da regra técnica segundo a qual uma multiplicação de símbolos de pênis significa castração. Ou seja, o excesso sempre tira ou inibe o prazer.
No mito, a visão da cabeça da Medusa torna o espectador rígido de terror, ou seja, a visão transforma-o em estátua de pedra. Freud observa que temos aqui, mais uma vez, a mesma origem do complexo de castração e a mesma transformação de afetos, porque ficar rígido significa uma ereção. Quem via a Medusa sentia uma enorme ereção, mas por que a representação de medo coletivo?
Para Di Cavalcante, a semana de arte moderna “seria uma semana de escândalos literários e artísticos, de meter os estribos na barriga da burguesiazinha paulista”. Seria como mostrar a cabeça da Medusa para os paulistanos.
Graça Aranha inaugura com seu discurso a semana dizendo: para muitos de vós a curiosa e sugestiva exposição que gloriosamente inauguramos hoje, é uma aglomeração de “horrores”. Aquele Gênio supliciado, aquele homem amarelo, aquele carnaval alucinante, aquela paisagem invertida se não são jogos da fantasia de artistas zombeteiros, são seguramente desvairadas interpretações da natureza e da vida. Não está terminado o vosso espanto. Outros “horrores” vos esperam. Daqui a pouco, juntando-se a esta coleção de disparates, uma poesia liberta, uma música extravagante, mas transcendente, virão revoltar aqueles que reagem movidos pelas forças do Passado. Para estes retardatários a arte ainda é o Belo.
Qual o horror de mostrar como arte o feio ao invés do belo? Será por que Narciso acha feio o que não lhe é espelho? Ou foi por ter que sair da zona de conforto e pensar?
A cabeça da Medusa, como símbolo de horror, foi usada pela deusa Atena em suas vestes, como marca indelével de sua roupa, tal como se fosse uma tatuagem na pele. Com esse símbolo ela se tornava uma mulher assustadora, inabordável, que repele todos os desejos sexuais, apresentando os terrificantes e proibidos órgãos genitais da mãe. Atena apresenta em suas vestes o tabu, sua ligação com os espíritos maus ancestrais através da roupagem tatuada, aterroriza os incestuosos e parricidas que querem quebrar a regra social para possuí-la.
Se a cabeça da Medusa toma o lugar de uma representação dos órgãos genitais femininos, ou melhor, se isola seus efeitos horripilantes daqueles que fogem do prazer, pode-se recordar que mostrar os órgãos genitais é por todos os efeitos um ato apotropaico: aquilo que tem o poder de afastar uma influência maléfica.
O que em nós desperta horror, também se produzirá no inimigo de quem estamos procurando nos defender. Por exemplo, uma pessoa aterrorizada com sua fobia específica não se dá conta de que tem inconscientemente o seu oposto que é a vontade de aterrorizar, causar pânico.
A palavra pânico vem do Deus Pan, cuja metade de baixo era de bode, metade de cima homem, vivia nas florestas aterrorizando os incautos e quem quer que ali ousava entrar.
Di Cavalcante
Uma analisanda que tem fobia de avião, após algumas sessões em que conversamos sobre a sua restrição de opções entre desamparo e onipotência, deslocada para a situação aérea, teve um sonho em que estava dentro de um avião se divertindo ao aterrorizar os passageiros com a frase; o avião está pegando fogo... No lugar do onipotente deus Pan ela não tinha mais medo, os desamparados eram os outros. Ela costumava dizer enfaticamente que odiava aquelas pessoas calmas no avião.
Rabelais escreve uma curiosa passagem em que o Diabo, como representação do espírito mau, se põe em fuga quando uma mulher lhe mostra a vulva: efeito apotropaico.
Melanie Klein disse que o ato sexual além de reparador afasta os monstros assustadores.
O órgão masculino ereto também possui um efeito apotropaico. Mostrar o pênis é dizer: “Não tenho medo de você, desafio-o. Tenho um pênis. ”
Plenas de sexualidade, as obras da semana moderna colocavam em fuga os espíritos maus. Mas quais seriam esses espíritos maus? O passado conservador? Mas um dia esse passado foi igualmente revolucionário. O que acontece? Por que a história natural do revolucionário é se tornar conservador?
Penso que o revolucionário cruel como o Deus Pan se torna conservador e criminoso. Os revolucionários que nunca deixam de ser revolucionários, como Freud e Gandhi são generosos e respeitam a ética da vida, além do amor à verdade. A mentira é fala do Deus Pan.
O dia 15 de fevereiro representou o auge da Semana, nos mais escandalosos termos. A nova literatura provocou irritação e algazarra no público presente. Destacam-se a palestra de Mario de Andrade, cujo texto depois se tornaria a publicação A escrava que não é Isaura, em que o autor defende enfaticamente o abrasileiramento da língua portuguesa, e a conferência sobre a estética moderna proferida por Paulo Menotti del Picchia, que provocou os ânimos da plateia, fazendo ecoar vaias pelos quatro cantos do Teatro.
Polêmica, confusa, barulhenta, interpretada como “demasiado festiva” e “pouco moderna”, não se pode negar que a Semana de Arte Moderna de 1922 foi um marco, um divisor de águas, no panorama artístico brasileiro. Ela escancarou as portas para uma grande liberdade no que diz respeito à produção e pesquisa estética no país, contribuindo para um florescimento intelectual e artístico. Foi um renascimento brasileiro, como foi o Renascimento. No dizer de Marcos Augusto Gonçalves, foi uma semana que não terminou.
Na visão de Di Cavalcanti, o acontecimento da semana extrapolou o campo cultural e repercutiu também na área política. Mas desconheço algum político de hoje em dia que seja herdeiro, ainda que distante, deste conhecimento produzido. Pois, no mínimo, é necessário ler e ter respeito por quem produz e pensa.
A Semana fez o papel de divulgação da arte moderna, que, por sua vez, cultivou o terreno para a consolidação de uma revolução artística e literária que tomou forma após 1922, quando foram lançados os manifestos de Oswald de Andrade e as obras fundamentais do Primeiro Modernismo brasileiro, tais como Macunaíma (Mario de Andrade), Memórias Sentimentais de João Miramar (Oswald de Andrade) e Ritmo Dissoluto (Manuel Bandeira).
Havia antes da Semana de Arte Moderna uma tragédia que se chama dificuldade para pensar. Essa tragédia continuou a existir após a cesura. Não houve mudança nessa tragédia nem na sua pseudo-resolução autoritária. Todavia, a Semana nos informa que cada um de nós pode viver o momento histórico em que a tragédia saiu do culto que lhe era feito, combateu a apologia à ignorância, enfrentou a servidão imposta pelos autoritarismos, desmoralizou o maniqueísmo político, e foi para o teatro. Foi com toda carga poética a seu favor, como todo o olhar amoroso que essa transformação permite.
A Semana de Arte Moderna foi um teatro, mas como tal saiu da religiosidade do culto à tragédia promovido pelo fundamentalismo autoritário, e deste modo saiu da presença dos deuses políticos e dos senhores acadêmicos donos do saber. Os deuses se retiraram na Semana, ou quem sabe foram os homens que os desampararam, tal como fez Sófocles lá atrás, com a peça Édipo Rei, levando os homens a passar do simplismo à complexidade, da sedução manipuladora à retórica, da palavra à escrita. Fez os homens pensarem em sua tragédia como homens na ausência de deuses.
A Semana de 1922 foi e ainda é um exemplo da história de brasileiros, homens e mulheres, uma história verde-amarela que valeu a pena ser vivida por ter o bem mais precioso nela incrustado: a liberdade de expressão. Essa continua ainda bastante apotropaica em nosso país.
Enquanto isso, como psicanalista, toda semana de trabalho é uma semana de arte moderna, e aqui encerro minha exposição com uma poesia de um dos participantes de 1922, a quem fui apresentado pessoalmente por meu pai, quando eu tinha 10 anos, num passeio na cidade de São Paulo, onde moravam meus avós paternos.
Beleza
Menotti Del Picchia
A beleza das coisas te devasta como o sol que fascina, mas te cega. Delas contundo a luminosa entrega nunca se dá, melhor, nunca te basta. E a imensa paz que para além te arrasta quanto mais se te esquiva ou te renega... Paz tão do alto e paz dessa macega que nos campos esplende à luz mais casta. A beleza te fere e, todavia, afaga, uma emoção (sempre a primeira e nunca repetida) que conduz o teu deslumbramento para um dia à noite misturado, na clareira em que te sentes noite em plena luz.
Notas:
[1] - Membro Efetivo e Didata da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ)
[2]- Professor catedrático da Faculdade de Medicina de Salvador
[3] Era o chamado período de isolamento esplêndido (1898-1902) de Freud.
[4] O manifesto antropófago (1928) é um exemplo importante dos frutos. Outro exemplo marcante é o quadro de Tarsila do Amaral, o Abaporu.
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