Estamos sempre empenhados em viver. Viver é deixar-se libertar para o comprometimento com a vida. Quando libertamos as condições de viver, a existência se dá como segurança de todo empenho e desempenho que podemos exercer. Em poucas palavras, a vida é para ser vivida com realizações; anestesiá-la com drogas ou equivalentes obscurece o enorme legado sobre o qual ela se baseia.
As duas últimas frases possuem uma penumbra de associações que pretende expressar e buscar uma função iluminadora em nosso presente diálogo. Levanto a primeira questão: O que acontece com o empenho e o desempenho em nossas vidas quando inesperadamente surge uma pandemia que impõe um isolamento social_ uma restrição da vida_ na suposição de que isso vai conter a doença?
De onde vem essa ideia de que as doenças precisam ser combatidas com isolamento? Por que no passado eram segregados os tuberculosos, leprosos, e os doentes mentais? Um clássico da Psicologia Social, “Manicômios, Presídios e Conventos”, mostra como essas instituições possuem todas uma arquitetura muito semelhante para retirar a visão do lado “fora” e colocá-la para apenas o lado de “dentro”. O Hospital Pinel no Rio de Janeiro, possui uma arquitetura praticamente idêntica ao do Fórum no Centro da Cidade. Sugere que uma arquitetura de medidas moralistas, punitivas e coercitivas andam de braços dados.
A pandemia para um psicanalista desde sempre não é só vírus, implica em vários níveis, em diversos problemas psicológicos, sociais e econômicos que causa. Por exemplo, o psicanalista sabe que certas ideias podem ser virulentas no mau e no bom sentido. Quanto mais o indivíduo se isola, e ele pode se isolar de uma forma muito rígida por conta de problema anteriores que já tinham essa característica (esquizoidia e fobia), mais temores aparecem.
O paradigma dessa situação é um personagem da Antiguidade chamado Santo Antão. Tratava-se de um jovem muito rico que buscava sentido para sua vida. Certo dia, ao frequentar uma missa, escutou o padre recitando um trecho do Evangelho de Mateus, que contava uma fala de Jesus dizendo para vender tudo, dar aos pobres e segui-lo. A fala pareceu dar um sentido à vida para Antão e ele fez exatamente isso, se isolando como eremita numa caverna do deserto. No entanto, isso gerou uma fama milagreira, e quanto mais ele se isolava mais pessoas o procuravam, enquanto ele vivia assombrado por fantasmas perseguidores. A ameaça faz parte da pandemia, mas a hipocondria que é consequente às ameaças subjetivas também.
Ou seja, efeitos psicológicos não podemos conter com medidas sociais práticas, eles não se resolvem com mais isolamento e nem com a reabertura. É preciso ir mais além, pensar de uma forma que encare a complexidade do ser humano. Como psicanalista penso que é preciso levar em conta a realidade do inconsciente agindo por detrás de todas as situações.
Num extremo do problema estamos lutando contra a morte, mas na maioria das vezes isso é feito socialmente insuflando o medo de morrer. Trata-se de um medo que pode ser tão doloroso que das profundezas do inconsciente pode surgir uma vontade de morrer para se livrar do sofrimento. Cruel paradoxo que as discussões da Mídia não dão nunca conta.
A busca ansiosa por placidez e calmaria pode traduzir a existência de depressão, por trás a vontade de morrer, e daí o ser humano pode recorrer a tudo para apressar sua morte: ansiolíticos, antidepressivos, drogas diversas. E assim quanto mais recorre, mais morre.
A vontade de morrer nos tira o empenho de viver e o desempenho da vida. Por exemplo, para que o isolamento social funcione é preciso que haja empenho, e desempenho. A dificuldade em mantê-los pode nos trazer impaciência, irritabilidade e, novamente a depressão, que é outra face desses dois primeiros elementos.
A pandemia nos trouxe um velho fato de milênios. O que existe de novo é apenas a necessidade de se propor sempre de novo a mesma coisa, com a novidade de ser a cada vez como se fosse a primeira vez: Trata-se da falta de pensamento que coloca os seres humanos na rota de fuga da capacidade para pensar, e que os afunda nos círculos do inferno de Dante. Leia-se depressão, ódio, hipocrisia, megalomania, negação da realidade.
É muito angustiante ter que pensar quando não queremos reconhecer a nossa pobreza de pensamento. São forças adversas em confronto. Testemunhei como analista neste período de pandemia, quase todos analisandos trazendo seu sofrimento com o isolamento e seus desdobramentos históricos, sociais e políticos. As variações das discussões públicas vivem no universo balizado por um lado pelo medo da morte, e por outro, pelo medo da falência e da fome.
O psicanalista precisa ter em mente que algum instrumento lhe é necessário para poder pensar no meio de uma situação que traz surpresa e angústia, e se quiser ir contra a correnteza dessas forças tão adversas. São forças tirânicas em ação: o inconsciente, o Estado, o vírus, os desdobramentos sociais e históricos.
Vou dar um exemplo pessoal sobre esse estado de coisas ao invés de traduzi-lo por situações clínicas. Farei o contrário do que habitualmente se faz. Traduzirei situações clínicas, que possuem uma invariante de algo que surge com surpresa e causa ambiguidades, e desperta memórias e dificuldades para enfrentar o impacto da situação.
Eu estava vagando pela cidade de Seattle em um momento livre da conferência em que estava envolvido, quando me deparei com uma estátua localizada numa pequena praça. A sensação foi de uma desconfortável desrealização. Fiquei em dúvida se era isso mesmo o que estava vendo; uma estátua de Lenin, de uns 4 metros de altura, com a clássica pose do braço apontado para algum lugar do discurso. Como, me perguntei, uma estátua dessas pode estar em uma cidade tão profundamente americana como Seattle. Cidade da Microsoft, Boeing, Starbucks, Ross, Amazon.com. Cidade de arte vanguardista em todos os setores, calma, civilizada.
Quando me dei conta de que era mesmo o que eu achei que era, e pude encarar o expressionismo artístico soviético, pensei na saturação do pensar do observador causada pelos traços grosseiros e abusivos da estátua. A hipótese de através dessa arte tentar impor às pessoas um tipo de temor reverencial opressivo deve ter tido um bom desempenho.
Fui atrás da história da estátua. A estátua foi comprada por um colecionador de arte americano que percorria países da Cortina de Ferro, logo após essa ter sido extinta. Carpenter (esse era seu nome) estava por acaso passando por um depósito de lixo quando viu a estátua ali jogada como sucata para ser reciclada.
Ele convenceu a prefeitura local a lhe vender pela quantia de 250 dólares e gastou cerca de 250.000 para transportá-la até o quintal da sua casa, onde ficou até sua morte. O detalhe é que ele pintou de vermelho as mãos da estátua, simbolizando o sangue derramado pelo fanatismo político que deu asas aos indivíduos que seguiram esse líder soviético. São as Asas da barbárie.
Após sua morte a prefeitura de Seattle herdou a estátua e decidiu coloca-la nessa praça em frente à casa do colecionador. Aí ficou, volta e meia despertando polêmicas se deveria ser retirada pelo que simboliza. Mas parece que até agora foi, digamos, a poesia da situação que salvou a estátua de voltar para o lixo. Foi convencer as pessoas do que a estátua podia mostrar e permitir discutir. Hoje em dia está na moda destruir estátuas. O fundamentalismo, como sempre antiartístico está grassando como vírus no mundo todo. Não apenas entre os Talibãs e outros fanáticos.
Para me salvar da situação desagradável pensei num trecho do poema A Nuvem de Calças; de Mayakovsky, que, se pudesse, colocaria numa placa de bronze nos pés da estátua. Era o que gostaria de dizer a Lenin.
Tu julgavas ser um grande Deus onipotente
Mas não passas de um Nada, muito desajeitado.
Vivias nas Nuvens
Hoje te encontro num buraco vendo o céu por ti ensanguentado
Vocês podem me questionar porque escolhi um poema do poeta oficial do regime soviético?
Na realidade, Mayakovsky era um poeta rigoroso, que chegava a reescrever cinquenta a sessenta vezes o mesmo verso e recolhia muito material informativo e linguístico para posterior uso nos seus poemas. Criou também ensaios sobre a arte poética e artigos curtos de jornal; peças de forte sentido social e rápidas cenas sobre assuntos do dia; roteiros de cinema arrojados e fantasiosos e breves filmes de propaganda.
Um homem de empenho e desempenho que tem exercido influência profunda em todo o desenvolvimento da poesia russa moderna, bem como sobre outros poetas e movimentos no mundo inteiro. O cantor e compositor João Bosco gravou uma de suas poesias E Então, Que Quereis...? Nos álbuns Bosco, de 1989, e Acústico MTV (João Bosco), de 1992, no qual passou a incluir a poesia como prelúdio da canção Corsário.
Mas, me dei conta que foi pela contradição que a frase do poeta pode expressar, e que ele talvez sem saber falou das nuvens do imaginário social, “a nuvem de calças”, supostamente uma nuvem civilizada, mas que se dissolve pois é vapor que não pode ser contido. Líderes tirânicos guiados pelo desejo de impor regras à liberdade de pensar acabam sempre fracassando.
Mas, para me recuperar da nova situação, trago uma frase de outro poeta contemporâneo de Freud, Rainer Maria Rilke: “ A beleza nada mais é senão o começo do terror que somos capazes de suportar”.
Ou seja, quando observamos uma obra de arte, tirante os aspectos ideológicos que a podem ter produzido, nos tornamos um observador sensível, e entendemos que todas as obras de beleza consubstanciam uma aterradora experiência de depressão e morte.
Um analista do famoso grupo do anel de Freud, Hans Sachs, escreveu um livro Beauty, Life and Death, onde enfatiza os aspectos aterrorizantes da beleza; ele afirma que a dificuldade não está em compreender a beleza, mas em suportá-la, e associa esse terror com a própria serenidade da obra de arte perfeita. A serenidade é aterrorizante porque ela é expressão da morte_ o elemento estático oposto à vida e as transformações.
Posteriormente, Donald Meltzer desenvolveu essa temática através da ideia de impacto estético que a beleza da mãe causa ao bebê. Suportar o impacto estético é condição de desenvolvimento da imaginação que assegura a ambos, mãe e bebê, uma relação amorosa.
Nossa tarefa como psicanalistas, de acordo com Bion, é observar e suportar o impacto do objeto psicanalítico em três áreas, mitos, paixões e sentidos. O conceito está intimamente ligado ao conceito de experiência emocional.
Tolerar o impacto do objeto psicanalítico é poder dar curso à experiência emocional através da capacidade negativa, expressão que Bion tomou emprestado do poeta Keats. E tema de nossa palestra de hoje.
Explico rapidamente, a expressão capacidade negativa abrange os aspectos essenciais do objeto psicanalítico: a incerteza, as meias-verdades e os mistérios. A incerteza é representada pela pré-concepção, as meias-verdades pelo espectro de concepções que vão do narcisismo ao social-ismo, e o mistério que representa a complexidade.
A expressão _ como o próprio Bion assinala_ surge numa carta do poeta a seus irmãos, datada de 21 de dezembro de 1817 : “ várias coisas se entrelaçam na minha mente ( ele está neste momento caminhando com Dilke [1]) e imediatamente me ocorreu qual qualidade é necessária para formar o Homem de Êxito, especialmente em literatura, e que Shakespeare possuía tão intensamente – refiro-me à capacidade negativa, isto é, quando um homem é capaz de conviver com incertezas, mistérios, meias-verdades, sem tentar apressadamente compreender – Coleridge, por exemplo, se contentaria com uma verossimilhança isolada apanhada do Penetralium [2] do mistério, uma vez que era incapaz de se contentar com um conhecimento pela metade”.
A primeira tarefa nos coloca no centro deste diálogo entre Bion e Keats, no qual nos deparamos com a captação da experiência de Keats por Bion, e o que Bion expande dessa experiência poética.
A visão estética que nosso livro sobre o tema enfatiza se aplica particularmente ao que Bion propõe, de uma maneira geral, para a prática analítica: centrar nos valores éticos e estéticos da vida psíquica através da language of achievement (1970). Traduzo essa expressão como linguagem psicanaliticamente bem-sucedida por seus objetivos de comunicar a finitude e a Infinitude, o tempo e o espaço, confrontar a verdade com o mistério. Sugerir que a pré-concepção opera.
Essa elaboração é feita essencialmente por indagações que ampliam as questões, e criam novos planos de questionamento, planos variáveis que admitem como única invariável: a incerteza.
Essa assertiva me permite indagar: o trabalho analítico limita-se apenas a modular a questão ética-estética ou de fato a transforma? Como observar o presente sem interferências de memória e desejo que nos joguem no falso apaziguamento das certezas?
Penso que o presente só pode ser de fato apreendido na dimensão que o relaciona com o futuro se estiver em uso a capacidade negativa e se ela permite o uso da intuição que atinge o nível de profundidade dos pensamentos selvagens, ou pensamentos livres, ou pensamentos poéticos.
Aqui podemos falar da forma psicanaliticamente singular de Saber que em Bion se traduz pelo vínculo K que conduz a experiência emocional (Bion,1962b): o Saber não é aquilo que sabemos hoje, mas aquilo que está no futuro, o que ainda não sabemos. O que é conhecido não nos serve mais, não é Saber: é acumulo de conhecimentos. Se como analogia usássemos o ato de leitura, digo que o livro lido ontem não me serve mais, apenas para presentear alguém. O importante é o livro que estou lendo hoje e que ainda não terminei_ este livro me conecta com o futuro, caso estimule a minha curiosidade sobre o meu Ser.
Posso dizer isso de outra forma, partindo da historicidade do futuro como dimensão ética e estética: a cada momento histórico os seres humanos estipulam seus desafios, estimam as forças de transformação que acreditam existir, separam em seu presente o que pode ser transformado daquilo que é inevitável, ponderam oportunidades, aquilatam mundos diferentes e se propõem a tarefa de promover ou evitar o que foi avaliado. Nesse sentido, o futuro é, obviamente, um futuro do presente; onde houve empenho em criar rascunho do que se estima poder ser e existir em função do que existe. Um rascunho amoroso para sustentar o amor como vínculo. Ao acessá-lo é como o fugaz momento do dia que se traduz pela alvorada ou pelo entardecer. Momento de contraste de luz e sombras, onde ao mesmo tempo se pode ver certas coisas e outras não.
Mas se entendemos o futuro como apenas uma crença, algo que não existe, pode-se levantar com respeito a uma memória do futuro uma forte objeção determinística: não se pode lembrar de algo que ainda não aconteceu. Uma história do futuro seria assim impossível, ora pela permanência de dados da causa, ora pela variação desenfreada do efeito. Contudo, mesmo um olhar rápido sobre a história faz com que se perceba que as antecipações ocorrem; algumas delas atravessam séculos antes que se saiba fazer algo com ela. Há momentos também em que ocorrem mudanças súbitas, graças aos indivíduos capazes de captar um pensamento sem pensador e trazê-lo para nós. Esses pensadores, também chamados de gênios, causam um corte histórico para a humanidade.
Quando o determinismo ganha força, e no passado ele era quase exclusivo, acreditava-se que o cabível ao homem era no futuro, após a morte, entrar no paraíso. Acreditou-se também numa outra versão disso, supondo como Lenin que uma revolução social fazia crível apostar que nossa tarefa é construir o paraíso na terra. Mas, como acontece com toda crença, ela apenas ilude a pré-concepção que coincide com a incerteza. As doutrinas políticas e religiosas são um bom exemplo de uma ilusão formada para enganosamente satisfazer a pré-concepção e negar o mistério, a incerteza e a existência de meias verdades.
Bion mostrou que se lidamos predominantemente com um campo de transformações, ao invés de um campo diagnóstico de conflitos e ansiedades, essa experiência emocional nos traz a necessidade de uma história do futuro.
A memória do futuro_ sendo a história de uma sombra_ paradoxalmente enfatiza que existe um hoje em aberto às transformações. Elas supõem, sobretudo, que nossa experiência de tempo é transformada pelo contexto emocional em que vivemos.
Mais uma vez assinalo que para desenvolver a questão das transformações, o conceito decisivo foi o de experiência emocional (Bion, 1962b), pois com ele atentamos para a criação histórica que a psicanálise introduz no cuidado psíquico _ e é aqui onde a psicanálise se insere na História da humanidade como nenhuma outra atividade humana, ao tornar possível apreender o que e como vindo de nosso inconsciente pode afetar a nossa temporalidade.
A intuição na história do cuidado psíquico psicanalítico é o elemento que compõe o arcabouço psíquico originário da observação. A intuição é a forma operativa que toma a pré-concepção_ associando como função os elementos: tempo, espaço e a profundidade da existência.
Intuição é a base da longa história da observação, que se inicia nos recônditos mais remotos de nosso passado. Por exemplo, quando nossos ancestrais domesticaram o fogo. Eles puderam cozinhar alimentos, e com isso preservá-los por mais tempo, o que resultou em não ter mais que gastar tanto tempo com a busca da comida. Esse fato aparentemente simples permitiu usar o tempo para observar como a natureza é rica em singularidades _ isto é, em fenômenos rítmicos ou periódicos. Este foi um dos sinais inequívocos do desenvolvimento da inteligência no ser humano, e suas evidências arqueológicas remontam a dezenas de milhares de anos atrás. Aliás, a imagem mais arcaica do tempo que podemos dispor é a do ciclo; imagem de um padrão que poderia ser também de um seio. Mais uma vez, se trouxermos complexidade à imagem, temos um looping autopoiético.
Até os dias de hoje, ainda estamos neste estágio de observação: em busca de um padrão que emerge. Dedicamos nossa capacidade analítica a esse fato, com algumas variações teóricas, como por exemplo, graças a Bion, a inclusão do Princípio de Incerteza. Bion disse: “ O Princípio de Incerteza de Heisenberg é uma etapa importante na jornada; é deplorável que qualquer parte da humanidade possa se achar certa. Se existe algo que é certo, é de que a certeza está errada” (Conversando com Bion, pp.202, Imago ed., Rio de Janeiro, 1992).
Todavia, desde as eras mais remotas, inúmeros povos compartilharam a crença, e daí chegaram a convicção ou certeza, de que a natureza se organizaria ritmicamente, traduzindo a conjugação dos diversos ritmos naturais como sendo a própria expressão da ordem cósmica ou divina vigente. Nas mitologias de todas as culturas encontra-se a associação de eventos primordiais (relatos da origem, episódios fundadores, feitos heroicos) com a disposição de constelações no céu. Essa prática tão generalizada de codificar acontecimentos modelares por meio de uma simbologia celeste _ ou estelar _ fez Giorgio de Santillana [3] afirmar, invertendo os termos da equação habitual, que a observação científica precederia a enunciação mítica, resumindo essa opinião em uma afirmação poética: o homem é o animal que olha para o céu [4].
Não há controvérsias acerca do papel crucial desempenhado na história do conhecimento científico pelo longo e árduo processo de registro de correlações entre os ritmos que regulam os fenômenos naturais _ biológicos, climáticos, sazonais, terrestres_ e a repetição de configurações dos astros. Nesse sentido, a astronomia seria indubitavelmente a primeiras das ciências; e a elaboração de calendários _ tabelas que exprimem associações entre ciclos da natureza e ciclos celestes_ a primeira das tecnologias. Mas também surgiu a astrologia acompanhando a necessidade de respostas rápidas. O que sempre gera ilusões e certezas.
Para a psicanálise na relação com o tempo existe sempre uma história que os pacientes podem estar nos contando sobre o ritmo das amamentações ou mesmo antes, dos ritmos que se combinaram no meio intrauterino (mente embrionária) para dar à luz a uma individualidade acolhida pela função da mente materna (reverie/função alfa).
Como psicanalistas devemos fazer levantar questões e fazer perguntas incômodas que cuidam do futuro da transferência (vínculo K). Com as questões podemos confrontar o paciente que apresenta afirmações díspares, movimentos incompatíveis de tempo, e que podem revelar como surgiram suas concepções e conceitos. Então, como psicanalistas, sempre temos uma saída: a pergunta difícil de ser feita. Mas para fazê-la necessitamos de capacidade negativa e pensamentos selvagens que possam acolhê-la. A capacidade negativa garante o uso da intuição que vai em busca de uma conjunção constante que nos permite alcançar significado. E significado é aquilo que faz a vida se mover.
Para encerrar vou retornar para a questão do arcabouço psíquico, nomeada em Bion como pré-concepção, ou seja, a função que expressa correlações entre temporalidade (intuição), memória do futuro (espaço) e pensamentos selvagens (profundidade), mencionando alguns momentos da descoberta do DNA feita por Watson e Crick. O modelo me agrada muito, pois me lembra do modelo de realização da pré-concepção em busca de uma concepção, isto é, a ideia geral de uma função ligando dois conjuntos. O elemento ψ acompanhando o elemento (ξ) em infinitas combinações de fatores.
A descoberta revolucionária do modelo de dupla hélice da estrutura do DNA proposta em 1953, enquanto ambos os jovens cientistas trabalhavam no famoso laboratório Cavendish da Universidade de Cambridge [5], envolveu um caminho de “ informações enganosas, falsas ideias e problemas de relações interpessoais”. Foi assim que James D. Watson descreveu o seu caminho da descoberta no seu livro [6] autobiográfico (1968).
Ele se descreve como um jovem cientista com pressa, lidando com a ignorância sobre o que era preciso saber e com a autoridade de seu diretor, Linus Pauling, que se insistia na procura de um modelo de três hélices. Por isso precisou pedir ajuda ao também jovem cientista Jerry Donohue, de Berkeley, que tinha um conhecimento amplo, talvez mais do que qualquer outra pessoa, sobre o que eram as ligações de hidrogênio. Os três cientistas trabalharam juntos por seis meses, num clima de trabalho quase caótico, que basicamente se opunha à autoridade de Linus Pauling, que jamais concordaria com a falta de austeridade que dava margem a discussão plena de pensamentos selvagens (ou seja, o trabalho com uso livre da intuição e da imaginação). Donohue insistia que Linus Pauling, duas vezes ganhador do prêmio Nobel de Química, nada entendia de química. Um método que seguidamente produzia informações enganosas, falsas ideias e problemas pessoais, mas que não fazia perder o bom humor e a boa vontade que iria produzir a descoberta. Os cientistas produziram o que de acordo com Bion (1977) seria uma cesura e transitaram de um lado para o outro com seus pensamentos selvagens, e se aproximaram de um pensamento sem pensador _ que acabou sendo pensado.
James Watson escreveu: o acaso favorece as mentes preparadas. Entretanto, por mais preparados que estivermos nunca será o bastante. Para nós analistas é adequado acostumarmos com isso e não nos deixar levar por autoridades em psicanálise. Isso é o que significa capacidade negativa.
Então, juntamente com a busca de desenvolver a capacidade negativa, penso que talvez seja preciso acrescentar a disposição de acatar informações enganosas, falsas ideias e problemas interpessoais, até que algo possa ser criado para iluminar o caminho escuro e obscuro.
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[1] Charles Wentworth Dilke (1789-1864), escritor e crítico de literatura inglesa. [2] penetralium, plural de penetralia, a parte mais profunda ou mais secreta de uma construção, um santuário (internum sanctum). [3] (1902-1974) Professor de História da Ciência no MIT (Massachussets Institute of Technology) [4] Giorgio de Santillana e Hertha von Dechend, Hamlet’s Mill, Boston, Godine, David, 1983. [5] Até a presente data, 28 pesquisadores deste laboratório ganharam o prêmio Nobel. [6] Watson, D.J.; The Double Helix: A Personal Account of the discovery of the Structure of DNA, Atheneum, New York, 1968.
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