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LINGUAGEM DE ALCANCE PSICANALÍTICO

Uma diferença transcendental


Trabalho apresentado no Lançamento da Revista Ide, 20/11/2021.


ARNALDO CHUSTER[2]


Diferenças de vértice são uma consequência inevitável de qualquer diálogo sobre vínculos entre áreas que escapam de definições únicas e até mesmo descrição, como são os vínculos entre psicanálise e poesia.


Deste modo, meu trabalho começa por um vértice ligeiramente diferente de Meg Harris Williams, ou talvez seja apenas complementar ao dela, ou ao Bion_ que ela menciona_ e que considerou “os poetas românticos como sendo os primeiros psicanalistas.


Ela também afirma que “Bion estava reverberando Freud, porém, de forma mais empática”. Penso que não se trata de “ forma mais empática”, mas, reverberando a empatia de Freud por outros vértices.

Para justificar minha hipótese, inicialmente levei em consideração as sutis igualdades e diferenças entre o romantismo inglês[3] em Bion e o romantismo alemão[4] em Freud. Entendo que o romantismo alemão inspirou as passagens mais artísticas, emocionais, e reconhecidamente poéticas de Freud, por exemplo, “a sombra do objeto caiu sobre o ego”, “os sonhos são a via regia para o inconsciente”, “Onde o Id era eu devo vir a ser”, “ Há muito mais continuidade entre a vida intrauterina e a primeira infância do que a impressionante cesura do nascimento nos permite acreditar”.


No entanto, Freud (1926), numa entrevista para o New York Times, firmemente considerou Nietzsche como sendo o primeiro psicanalista. Freud disse que ninguém compreendeu tão bem como o filósofo o problema dos dois princípios de funcionamento mental. Após afirmar isso, Freud cita Nietzsche em Assim Falou Zaratustra[5], “ A dor grita; Vai! Todavia, o prazer quer eternidade pura, profunda eternidade".


O jornalista imediatamente rebate: o Senhor também é um poeta. Freud não negou, tomou como um elogio, e asseverou a enorme troca e contribuição entre a psicanálise, a poesia, e a literatura.

Com esses pensamentos e diferenças me indaguei se a origem da psicanálise é a poesia ou a filosofia?


Todavia, também senti necessário, como contraponto, retirar o splitting e indagar a possibilidade de uma origem inconsciente comum, ou um ponto onde ambas as disciplinas não estão separadas.

A raiz filosófica da psicanálise, reconhecida por Freud, tem um desenvolvimento absolutamente original na Teoria do Pensar de Bion (1962). Bion afirma que a psicanálise é uma resposta prática para questões filosóficas, ou seja, questões da vida, que os filósofos sabem colocar muito bem, entretanto, não podem dar a singularidade do sujeito da prática que sofre a soberana influência do inconsciente na vida mental.


Ao mesmo tempo, Bion diz que a relação entre a filosofia e a psicanálise precisa seguir a mesma ordem que, existe entre a matemática pura e a matemática aplicada, ou seja, a psicanálise precisa ter um campo, definido por seus limites e possibilidades, e que seja regido por princípios epistemológicos que o afastem de crenças e hábitos vazios (Chuster, 2011,2014,2018).


A parte da matemática pura a qual Bion está se referindo são os fundamentos da matemática. Particularmente, os represento pelas questões epistemológicas desenvolvidas pelo matemático austríaco Kurt Gödel[6] sobre as proposições indecidíveis e o Princípio da Indecidibilidade da origem. Essas ideias são complementadas pelo teorema do terceiro excluído, que propõe um ponto de Indecidibilidade (vazio), a ser preenchido por decisões interpretativas transitórias, criadas por detalhes de observação e imaginação criativa.


Na ciência, Werner Heisenberg[7] aplicou essas ideias para criar o seu Princípio da Incerteza na Física Quântica[8], permitindo expandir a criação dos sistemas abertos, já apontados por Poincaré[9] para os sistemas vivos e dinâmicos.

Os sistemas abertos são espectrais, não lineares, não deterministas, não hermenêuticos, não diagnósticos, cuja existência a teoria da complexidade (Morin[10]) clarifica como sendo uma forma ética universal de pensar, a ser seguida caso desejemos dar um futuro para a humanidade.

Existem muitos exemplos de sistemas abertos na obra de Bion, a teoria do Pensar (1962), o objeto psicanalítico (1963), a Grade (1963, 1965, 1977), a turbulência emocional (1976), e, sobretudo, o modelo observacional da cesura (1977).


Tentarei dialogar agora sobre como Bion ao utilizar os sistemas abertos evolui para um complexo modelo de técnica psicanalítica, que requer uma linguagem interpretativa que lhe seja adequada, e por isso se utiliza do paradigma da poesia que é um vigoroso exemplo de sistema aberto.

Como esse modelo de técnica faz a confluência de questões filosóficas, epistemológicas, e estéticas da teoria do Pensar (1962), preciso assinalar que a utilização do poético em Bion vai muito além de um estilo literário. Trata-se de um modelo de expansão da intuição e da imaginação na criação de muitos conceitos que emergiram na prática psicanalítica. Neste ponto, talvez possamos falar do poético como continente, e da poiesis como conteúdo; fazendo contraponto com a intuição como conteúdo e a imaginação como continente.

Em poucas palavras, penso que Bion ao aplicar essa relação continente/conteúdo na maioria de seus trabalhos, pode utilizar o que é mais profundo na ação poética_ a poiesis _ sendo essa hipótese a que tentarei desenvolver a seguir[11].


Para fazer isso vou citar o que chamarei de poesia psicanalítica de Bion, e focalizá-la com o auxílio de dois poetas do século XX, Paul Valéry e Mario Quintana, e uma citação do sublime escritor brasileiro Guimarães Rosa. Eventualmente adicionarei a poesia de Fernando Pessoa.


Bion (1970): “ A matemática é a Linguagem da Realização ou de Restauração? O que é necessário não é uma diminuição da inibição, mas uma diminuição do impulso para inibir; o impulso para inibir é fundamentalmente a inveja dos objetos que estimulam crescimento. Deve-se procurar uma atividade que seja tanto a restauração de deus (a Mãe) como a evolução de deus (o informe, infinito, inefável, inexistente), que pode ser encontrado somente no estado em que não há memória, desejo, compreensão”.


Guimarães Rosa[12]: a linguagem é uma porta aberta para o infinito.


Paul Valéry:Aquele que escreve todo um poema numa noite de febre, não é um delirante febril, mas sim um sábio calculista, quase um algebrista, aos serviços de um sonhador refinado”.

Mario Quintana[13]: “sonhar é acordar-se para dentro”.


Correlacionarei estas citações poéticas com alguns conceitos desenvolvidos por Bion em Transformações (1965), Atenção e Interpretação (1970), e Cesura (1977). Estes conceitos, antes do mais, produziram uma guinada epistemológica que nos leva dos dois princípios freudianos de funcionamento mental para os três princípios de vida (Bion, 1979). Os três princípios são outro vigoroso exemplo da complexidade de um sistema aberto: (Sentimentos) + (pensamentos antecipatórios) + (sentimentos mais pensamentos mais Pensamentos); sendo este Pensamento com P maiúsculo sinônimo de Prudência ou previsão na ação[14].


Os três princípios de vida, representando uma expressão ético-estética da poiesis psicanalítica (Chuster, 1999, 2003, 2011, 2014, 2017, 2018, 2020) são uma espécie de produto final das proposições que Bion desenvolveu em sua obra sobre o estado mental adequado para o trabalho analítico.

A primeira proposição veio da poesia de T.S. Elliot (Four Quartets[15]): trabalhar sem memória e sem desejo (Bion, 1967).


A segunda proposição, foi descrita pelo poeta Keats como um estado mental necessário para alcançar a performance literária: capacidade negativa (Bion, 1970). Se pudéssemos dar uma definição simples seria a busca de um autor pela beleza estética, não se importando se fazem sentido. Trata-se do que podemos chamar de licença poética, uma abertura para a criatividade, uma expressão de suprema empatia[16].


Bion (1975) disse que Keats com sua capacidade negativa descobriu o princípio da Incerteza[17]. A afirmação de que um princípio matemático foi descoberto por um poeta, bem antes do Físico quântico, nos leva às descrições de Bion (também ao poema de Valéry) sobre um ponto de poiesis que tentarei esclarecer adiante.


O analista ao se situar frente a existência deste ponto de Indecidibilidade (Incerteza), tem uma experiência emocional, através da qual procura alcançar a singularidade do analisando, e aí se puder adotar como prática os três princípios de vida, se encontra, sempre de uma nova forma, diante da escolha[18] da estrada de palavras (interpretação) a ser trilhada. Adiciono aqui a poesia de Bion: “ a característica dominante de uma sessão é a personalidade desconhecida e não o eu o analisando ou o analista pensam que sabem”. ( 1970, p.96)


As palavras podem ser provenientes de muitas disciplinas, com a condição de seguirem um critério (Prudência na ação) no campo analítico, ou seja, serem utilizadas para a observação do objeto psicanalítico em três áreas integradas: mitos, sentidos e paixões (Bion, 1962b, 1963). Em diversos trabalhos, mostrei que são integrações ético-estéticas (Chuster, 1999, 2003, 2011, 2014, 2017, 2018, 2020, 2021), que pensam o mundo de forma intuitiva, não discursiva, e que se opõem ao conceito de narrativa que usarei mais adiante.


Encontrei em Hölderlin[19] uma afinidade poética[20] para o que acabei de dizer, o poeta ressaltando o vértice infinito da linguagem (da mesma forma que Guimarães Rosa), descreve uma “tripla natureza do Self poético, pelo qual é possível operar a transição de um infinito determinado para um infinito mais geral”. A tripla natureza de Hölderlin é constituída pelo sujeito (paixões), objeto (mitos) e humano (sentidos)[21].


Keats, com a expressão capacidade negativa, estava se referindo a um ponto em que enfrentamos algo que não possuímos, algo que requer a capacidade de tolerar uma tripla natureza: as incertezas, os mistérios e as meias-verdades[22], com o critério de não ficar ansioso para entender e encontrar significado. As decisões executadas neste ponto, através das palavras e da linguagem, resultam num Homem de Êxito (Man of Achievement) em Literatura, que Keats exemplificou com Shakespeare e sua obra.


Bion (1970) trocou o substantivo Homem pelo substantivo Linguagem e postulou uma Language of Achievement, afirmando que a obra de Freud é um exemplo desta Linguagem. Não deveríamos então chamá-la de linguagem de alcance psicanalítico?


Bion (1970) também complementou suas ideias sobre a Language of Achievement usando a expressão Ato de Fé, o que significa que a linguagem psicanalítica deve intencionar a busca da verdade, não para encontrá-la, mas para que um ato de criação (poiesis)[23] se estabeleça (Nietzsche[24]).


Utilizei o verbo “intenção”, não no sentido de um desejo, e sim de uma invariância (Bion, 1965), uma direção que podemos escolher baseada na surpresa que a experiência emocional nos causa.

Na prática psicanalítica isso significa que o analista escuta diversos tipos de narrativas em seu consultório. Temos narrativas sobre o dia a dia das coisas da vida, discurso científico sobre os problemas do mundo físico, preocupações religiosas, narrativas históricas sobre eventos que ocorreram ou que se supõe estejam ocorrendo, discurso sociológico/político sobre as instâncias práticas da sociedade. Todavia, é necessário levá-los, com o uso da capacidade negativa, para uma direção do limiar que se aproxima do que pode ser o limiar do discurso poético. Se deste limiar, uma interpretação emergir, esperamos que possa ser, se não uma Language of Achievement, pelo menos uma linguagem de alcance psicanalítico.


Penso que esse limiar pode ser também chamado de cesura (Bion,1977), outro conceito vindo da poesia. O significado original é uma pausa no interior de um verso, mas trata-se de uma pausa que ao mesmo tempo separa e liga dois estados mentais distintos, uma pausa que produz continuidade e diferença.


Novamente surge a questão: como estabelecer um critério (como fazem cientistas e poetas) quando estamos trabalhando com psicanálise para diferenciar a linguagem de alcance psicanalítico da linguagem que é simplesmente poética. Mais adiante incluirei a linguagem de Substituição (Bion, 1970) nessa diferenciação.


Para tal diálogo vou parafrasear Bion (1979) com duas perguntas: como tornar nossa escuta psicanalítica capaz de atingir o limiar poiético (cesura)? Pode esse limiar nos tornar melhores analistas?


Existiria algo_ em analogia com Hölderlin _ que poderia ser chamado de um Self psicanaliticamente poiético (Chuster,1996, 1997, 2014, 2018, 2020, 2021)? Aquele que opera com capacidade negativa, possibilitando inserir a intuição numa imaginação capaz de investigar a relação finito/infinito, até publicá-la em uma interpretação.


Por exemplo, posso utilizar nessa investigação um mito, um sonho, ou um pensamento onírico. Talvez um não seja utilizado sem os outros.


Escolho então o mito de Satã, descrito por John Milton em Paradise Lost (a versão de Milton para o mito de Édipo[25]) como um modelo de Linguagem de alcance psicanalítico para pensar no conceito de transformação em O (Bion, 1965). Ao fazê-lo digo que adoto Fernando Pessoa “ o mito é o nada que é tudo”.


A riqueza imaginativa fornecida pela linguagem da queda mítico-poética de Satã, mostra um personagem que em virtude da curiosidade sobre sua personalidade está constantemente caindo no espaço em direção a um infinito, vazio e sem forma, e quanto mais ele cai, mais cai em si mesmo.

A expressão cair em si mesmo traduzo pelo subtítulo de Nietzsche em Ecce Homo[26], “como chegar a ser o que se é”, ou como tornar-se o Ser que verdadeiramente somos. Encontramos dificuldades em todos idiomas para achar uma expressão adequada para a correlação entre Ser e tornar-se. Tal dificuldade é típica da abertura das palavras para o infinito.


O tornar-se quem verdadeiramente somos, é uma queda, uma mudança catastrófica (Bion, 1966), no sentido que o estado anterior nunca pode ser totalmente reconstituído. Entretanto, apesar de toda atividade desconstrutiva, a queda é poiética _ é uma forma de criação: uma transformação. O que é criado é precisamente o advento de um novo sujeito, nunca dado, mas duramente conquistado no curso de uma luta por liberdade interna[27].


Em outras palavras, a função do mito, enquanto cria um limiar poiético, pode ser descrita, em primeiro lugar, como função restauradora da intuição analítica. Mas trata-se também de pensar mais (evolução) sobre a afirmativa Kantiana: toda intuição sem conceito é cega, todo conceito sem intuição é vazio, e de que forma juntá-los.


Intuição e conceito são vinculados num espaço-tempo de resultados incertos. É neste espaço de incerteza que podemos encontrar uma importante contribuição de Bion. Ele foi além de Kant quando deixa implícito que intuição e conceito são ligados por meio da imaginação (Chuster, 2020, 2021)[28].


Bion define o mito, em Elementos de Psicanálise (1963), como uma forma básica de pré-concepção e um estágio pelo qual o conhecimento individual é comunicado ao grupo: uma public-ação. Seguindo Hölderlin trata-se da tripla natureza da linguagem passando de um infinito individual para o geral.


A pré-concepção abre o caminho para a vida mental, através da realização que gera concepções e conceitos. A realização expressa um pensamento antecipatório[29] (Bion, 1979), um movimento transitório.


Como linguagem matemática, a linguagem de realização, é uma sucessão de conjuntos infinitos se combinando, criando um futuro, ao permitir a escolha de uma direção onde um padrão simbólico será encontrado (Matte-Blanco, 1977). Todavia, o padrão encontrado, que podemos chamar de linguagem de restauração, não perde a incerteza antes presente na pré-concepção, ou naquilo que ela contém de representação da complexidade da vida, criando uma inevitável tensão.


Essa tensão, ou turbulência emocional (Bion, 1987), é comum a toda criação. Quando consideramos as alterações na observação produzidas pelo observador, a tensão fica maior, e faz-se imperativo considerar que, de fato, somente em um passo à frente, no futuro que ainda não aconteceu, é que encontramos uma continuidade de pensamento ou mesmo o pensamento em si.

Pode parecer uma contradição se digo que o que penso não está no presente, mas no amanhã que ainda não aconteceu. Entretanto, tal contraditório existe apenas no determinismo psíquico, não na teoria da complexidade pela qual se acolhe as hipóteses mais imaginativas e fictícias, como também aquelas que constituem o lugar-comum.


Posso aproximar as afirmativas acima do “misticismo filosófico” notavelmente representado por William Blake. Blake certamente não era filósofo, mas enquanto poeta era um visionário, e assim evolui para restaurar um ponto onde não se pode separar a poesia da filosofia, ao dizer: “ Eu escrevi esse poema ao mesmo tempo sem nenhuma reflexão e contra a minha vontade...não fui nada mais do que um secretário. Os autores permanecem na eternidade”.


De certa forma, Blake está se livrando de suas memórias e de seu desejo para explicitar o que causa o seu ato poético- linguagem de restauração ou realização?


No “Casamento do Inferno com o Céu[30], Blake afirma que a razão pela qual Milton escreveu Paraiso Perdido foi o fato de ter tanto de poeta verdadeiro, “quanto de parte com o Diabo sem o saber”. Observe-se que a visão artística e literária de Blake apreende o processo de criação associando a queda do conhecimento prévio, mostrando que não é o conhecimento que nos faz mudar, mas o enigma que nos invade. Esse enigma é “O”, que é tanto um Onthos quanto um Opus (Chuster, 2014, 2018, 2021).

Esclareço: Quando tentamos encontrar uma linguagem para expressar o enigma, ela estimula o pensamento enquanto abre para as emoções, que são subjetivas e nada acrescentam as narrativas sobre o mundo. O resultado necessariamente não aumenta conhecimento, embora possa ser um prelúdio para o espaço do Ser através dessas emoções.


Suponha, no entanto, que o discurso narrativo usurpa nossas observações, substituindo o que poderia fazer emergir a experiência emocional (Bion, 1962). Neste caso, torna-se uma linguagem de Substituição. Ela substitui a ação e não é prelúdio; ou seja, retira o potencial criativo da pré-concepção, podendo transformar-se em crenças e dogmas, e inibir a matriz amorosa geradora do prelúdio e da ação (Bion, 1970).


Narrativas são sempre o produto de memórias e desejos, obscurecem o enraizamento primário do Ser e endossam uma visão não-crítica da realidade que se transforma em um conceito de verdade-adequação_ que coincide com a produção de falsidades e mentiras.


Para ir numa direção diferente das narrativas preciso da poiesis, e para expandir a afirmativa vou citar mais uma vez, Fernando Pessoa, com o pseudônimo de Alberto Caieiro.


Se algumas vezes eu digo que as flores sorriem

E se digo que os rios cantam

Não é porque eu penso que existem sorrisos nas flores

E canções nos rios

É porque desta forma, eu faço os homens falsos sentirem

A real existência de flores e rios.


Adoto a poesia acima como modelo de descrição do espectro reverie/função alfa para a seguinte situação no trabalho do analista: Quando entramos em contato com o paciente na sala de espera ele nos permite sentir o cheiro do movimento, a cor do silêncio, o gosto da presença, o som da pele, o ruído do olhar. Não sabemos o que captamos nesse mundo infra sensorial/sensorial até nos instalarmos na poltrona e, com esse prelúdio para a sessão, entramos no simbólico do ato analítico. Acaso e escolha se unem neste ponto de Indecidibilidade.


Não existe nada de científico nessa descrição da realidade captada; eu não coincido comigo mesmo quando sigo essa forma de pensar. Eu discordo com o comum, com a forma coloquial, com a lógica trivial, entretanto essa não coincidência é de onde surge a exatidão da linguagem psicanalítica. Posso exemplificar essa não-coincidência nas passagens de Memória do Futuro (1975) onde existe o diálogo entre Bion, Myself e P.A. Os três não coincidem. Myself informa algo à Bion que não coincide com Bion, que precisa publicar essa informação como P.A, também não coincidente com Bion ou Myself. Trata-se de um inevitável sonhar, que como disse Quintana, é um acordar-se para dentro.


A linguagem de alcance psicanalítico é uma espécie de poética da exatidão porque fala de sentimentos. Os sentimentos têm precisão matemática, assim explicitou Bion, e criam uma cesura que é como uma diferença transcendental para um momento específico do vínculo analítico. Volto aqui ao poema de Valéry quando o matemático fica à serviço de um sonhador refinado.


Utilizo a expressão diferença transcendental como um sinônimo pessoal para o enigma, para “O” ou para a pré-concepção. A expressão propõe um diálogo sobre a psicanálise em Bion como uma prática da transcendência cuja poiesis nos tira da ética dramática voltada para a morte, e nos traz para o contexto de uma linguagem que tem a matriz amorosa pela verdade (Bion, 1970).

As afirmativas acima me levam a propor para a psicanálise o adjetivo de atividade prático-poiética (Chuster, 1997, 2006, 2021). Penso que essa é a mais antiga definição da techné, aquela que está em Homero[31], significando o decifrar de um enigma que faz trazer algo à tona (Chuster, 1997, 2014, 2018, 2021), ou fazer ser_ sem perder o vigor do enigma_ o que era para vir a ser.


A psicanálise é prática porque seus participantes são parte ativa no processo, sendo o analisando o agente principal de sua transformação.

A psicanálise é poiética porque é criativa, seu resultado confere uma nova forma de se relacionar com o inconsciente, promove o uso da estética das emoções na descrição do mundo, e nos leva também ao universo ético-estético da liberdade de pensamento.


Para finalizar, cito Bion (1965) dizendo que a interpretação deve fazer algo mais do que aumentar o conhecimento do analisando sobre si mesmo. Esse algo mais, fornecido pela estética das emoções e pela ética da sinceridade pode, ao favorecer o tornar-se o Ser que verdadeiramente somos, gerar algo que melhora a qualidade da vida psíquica. Contudo, quando digo “pode” é para não dizer que não falei da incerteza (ou de flores e rios).




REFERÊNCIAS


1-Bion, W.R. (1967) Second Thoughts, Heinemann, London.

2----------------- (1956) Differentiation of the psychotic and non-psychotic personalities in: Second Thoughts (pp 43-64) London: Heinemann, 1967

3------------------ (1957) On Arrogance. In: Second Thoughts. Northvale: Jason Aronson Inc., 1967.

4-------------- (1962a) A Theory of Thinking. In: Second Thoughts. Northvale: Jason Aronson Inc., 1967.

5---------------- (1962b) O Aprender da Experiência. Zahar, Rio de Janeiro.

6------------- (1963) Elements of Psychoanalysis, Heinemann, London.

7-------------- (1965) Transformations, heinemann, London.

8--------------- (1966) Catastrophic Change, Bull.Brit.Psychoanal.Soc. Nº5

9--------------- (1977) Emotional Turbulence, in P.Hartcolis (ed.) Borderline personality Disorders, Int.Univ.Press, New York

10___________ (1970) Atenção e Interpretação, Imago, Rio de janeiro.

11--------------------(1975) Uma Memória do Futuro, volume I, Imago, Rio de Janeiro

12--------------------(1977) The Grid and Cesura, Imago, Rio de Janeiro.

13--------------------- (1994) W.R. Bion: Clinical seminars and Other Works. London: Karnac

14-Brandão, J.S. (1986) Mitologia Grega, vol.I, Vozes, petrópolis.

15-Castoriadis, C. (1987) As Encruzilhadas do Labirinto, Paz e Terra, Rio de Janeiro.

16-Chuster, A. (1989) Um Resgate da Originalidade, Degrau Cultural, rio de Janeiro.

17___________ (1996) Diálogos Psicanalíticos sobre W.R.Bion, Tipo & Grafia, Rio de Janeiro.

18__________ (1997) “The myth of Satan: an aesthetic view of Bion’s concept of transformation in O” –International Centennial Conference on the work of W.R. Bion, Turin, Italy, July 1997.

19___________ (1999) W.R.Bion: Novas Leituras. Vol.I: a psicanálise dos modelos científicos aos princípios ético-estéticos. Companhia de Freud, Rio de Janeiro.

20------------------(2003) W.R.Bion: Novas Leituras, vol. II: a psicanálise dos princípios ético-estéticos à clínica, Companhia de Freud, Rio de Janeiro

21--------------------(2011) O Objeto Psicanalítico. Edição Instituto W. Bion, Porto Alegre.

22____________ (2012) Cesura e Imaginação Radical: obtendo imagens para a ressignificação da história primitiva no processo analítico. In: Sobre a Linguagem e o Pensar. Org. Jose Renato Avzaradel. Casa do Psicólogo, São Paulo.

23-------------------- (2013) A importância da imaginação do analista na prática clínica: um ensaio sobre a capacidade de se conectar com o mais primitivo. Trabalho apresentado na X Jornada Científica do Instituto Wilfred Bion, Porto Alegre

24--------------------- (2014) A Lonesome Road: essays on the complexity of W.R.Bion’s work. TrioSudios / Karnac, Rio de Janeiro

25______________ (2017) Simetria e Objeto Psicanalítico; desafiando paradigmas com W.R.Bion. Trio Studio, Rio de Janeiro

26______________ (2018) capacidade negativa; um caminho em busca da luz. Zagodoni editora, São Paulo

27______________(2020) Psychoanalytical Intuition in dream and waking life, trabalho apresentado no Congresso Internacional sobre a obra de Bion, Barcelona, Espanha, fevereiro de 2020.

28-------------------------(2021) O enigma de Ulysses em Homero e James Joyce, Revista Ide, volume 43, junho, 2021.

29------------------------(2009) Chuster, A. e Trachtenberg, R. (2009) As Sete Invejas Capitais. Artmed, Porto Alegre.

30----------------------(2014) Chuster, A.; Soares, G., Trachtenberg, R.;(2014) A Obra Complexa, Editora Sulina, Porto Alegre

31--------------------Cormican, L.A. (1982) Milton’s religious Verse in: The New Guide to English Literature, Ed. By Ford, B., Middlesex.

32 -----------------------Freud (1926) Entrevista ao jornalista George Viereck, New York Times.

33---------------------- Lacroix, J. (1979) Kant e o Kantismo, Rés editora, porto.

34-------------------------Laplanche, J. (1993) La Interpretación entre el determinismo y la hermenéutica, reenunciando el problema in: Libro Anual de psicoanálisis, escuta, são Paulo.

35------------------- Matte-Blanco, I. (1975) The Unconscious as Infinite Sets: an essay in Bi-Logic, Duckworth, London.

36----------------------Meltzer, D. (1989) “Notas sobre o processo Introjetivo”. Rev.Bras. Psicanal.vol23, no3

37---------------------------------------(1992) “Além da Consciência” Rev.Bras. Psicanal. Vol.26, no3.

38--------------------Paz, O. (1993) A Outra Voz, Siciliano, São Paulo.

39--------------------Ray, C. (1994) Tempo, Espaço e Filosofia. papirus, campinas.

40---------------------Robson, W.W. (1982) Paradise Lost: Changing Interpretations and controversy in: the New Guide to English literature, ed.By Ford, B., Midlessex.

41- Sandler, P.C. Bion e Poesia J. psicanal. vol.43 no.78 São Paulo jun. 2010


NOTAS:

[1] - Trabalho apresentado no Lançamento da Revista Ide, 20/11/2021.

[2]- Membro Efetivo e Didata da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), e do Newport Psychoanalytical Institute (NPI), Califórnia, Membro Honorário do Instituto Bion, Porto Alegre.

[3] - Ascenção de classe e revolução de costumes como background do romantismo inglês.

[4] - Sturm und Drang, movimento de unificação do país, como background do romantismo alemão.

[5] - Nietzsche F. Thus Spoke Zarathustra, Wordsworth ed., 2018.

[6] - Braaz M. et al. Kurt Gödel and the foundations of mathematics: horizons of Truth, Cambridge, 2014. [7] Asimov, I. O que é o Princípio da Incerteza de Heisenberg? Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986. 3ª Edição. (Trad. Edna Feldman.) [8]- Temos desdobramentos dos teoremas de Gödel nos sistemas computacionais, na teoria do Caos, teoria dos Fractais, Teoria da Catástrofe e, na Teoria da Complexidade. [9] Folina, Janet, 1992. Poincare and the Philosophy of Mathematics. Macmillan, New York. [10]MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 116.

[11] -Poderia chamar de Teoria da Poiesis Psicanalítica complementar a Teoria do Pensar de Bion.

[12]PONTES, Hugo. Guimarães Rosa, uma leitura mística. Poços de Caldas, Gráfica Sulminas, 1998.

[13]Mario Quintana, Poesia Completa - Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2005. [14] - O termo Prudência é usado por Aristóteles como a mãe de todas as virtudes, que se traduz por um continente ético para a estética das interpretações. Trata-se de uma ética de pensamento psicanalítico. A Prudência dá à luz ao que chamo de barreira de contato ética (Chuster,2020), que se inicia com a sinceridade, e seus desdobramentos na palavra, no caráter, na coragem, compaixão, respeito à verdade e à vida. [15] Elliot, T.S. Four Quartets, Houghton Mifflin Harcourt P; 1ª ed.1968. [16] - Empatia é a capacidade para participar, experimentar, e entender as ideias e sentimentos de outras pessoas. Uma ferramenta de criatividade para entender pontos de vista diferentes do nosso. [17] - Memória do Futuro, volume I, pg.220.

[18] - Uso o verbo escolher no sentido descrito na poesia de Robert Frost: The Road not Taken (Chuster, 2018).

[19] - Werle, M.A, Poesia e Pensamento em Hölderlin e Heiddeger, Editora Unesp; 1ª ed. (2005)

[20] - Safransky, R. Romantismo, uma questão alemã, ed. Estação liberdade, trad. Rita Rios (2021)

[21] - Se quiserem podem levantar a hipótese de elementos comuns nos romantismos inglês e alemão.

[22] - São as três facetas do objeto psicanalítico: pré-concepção (incerteza), complexidade (mistérios), meias-verdades (espectro narcisismo-social-ismo).

[23] Posso complementar esse aforisma nietzschiano com a famosa analogia de Fernando Pessoa da frase do general romano Pompeu: navegar é preciso, viver não é preciso. Pessoa disse; viver não é preciso, o que é preciso é criar. Que podemos entender como dar sentido à vida.

[24] Além do bem e do Mal ou Prelúdio de uma Filosofia do Futuro. Hemus, 2001

[25]-Aproveito para dizer que posso usar quaisquer aspectos do mito de Édipo. [26] - Nietzsche, F. Ecce Homo, LeBooks, 2019

[27]Podemos entender esse movimento mítico-poético na linguagem de Bion como uma transformação de K->O (a transformação psicanalítica que pode ter como consequência uma transformação em O)[27]. [28] - A imaginação, bem trabalhada no texto Transformações (1965) se refere a criação de um modo que nenhuma filosofia, com exceção de Castoriadis (que era também psicanalista) dá conta. Todos falam de produção, desde Kant até Marx. A criação implode a ontologia tradicional, que é uma ontologia determinística, onde se exclui a possibilidade de novas determinações [29] -Um dos três princípios de vida descritos por Bion (1979)

[30] Blake, W. Casamento do Inferno com o Céu, Lp&M books, 2008.

[31]- O surgimento da poesia de Homero, como infância da humanidade, assinala uma disjunção. Entusiasmado pelo fogo de Apolo, o poeta toma um gole de água sóbria roubada do cântaro de Juno. A cisão que lança contradições é a mesma que traz a liberdade.

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