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Comentários sobre a Conferência de Bion em Paris

Atualizado: 30 de ago. de 2021

"…la conception spatiale est inevitable si on vent donner à la relation in abstractio une interpretation tangible et plastique" [1]

Petitot, 1985.


Essa Conferência de Bion nos traz uma espécie de desafio de pensamento: estabelecer a conexão entre as atividades do psicanalista e do artista, e que provoca de imediato um interesse estranho, e que não é apenas uma questão teórica, mas de muitas questões da prática psicanalítica.


O artista e o psicanalista despertam um no outro uma inquietação de pensamento. Podemos chamar essa inquietação de turbulência emocional a qual se seguem pensamentos selvagens.


São pensamentos que nos colocam fora da área conhecida; remetem a uma natureza indomável, ou, uma área apenas disponível para observações constantes. Podemos dizer que a domesticação é apenas da nossa observação, o objeto observado continua selvagem e livre. Se voltarmos a observação traremos de volta a turbulência.

Bion sugere que devemos olhar para esta turbulência como fazem os artistas e, ao mesmo tempo, investigar_ como fazem os cientistas_ todas as dimensões do mundo.

Se nós psicanalistas fizermos isso não ficaremos indiferentes às interpretações que os três produzem, e suas conexões nos vários domínios do mundo social-histórico.


Trata-se, na essência, da proposta que está contida na Teoria do Pensar, ou seja, vamos procurar pensar a psicanálise por outros vértices, indagar a validade de todos os conceitos e teorias, verificar se podemos recuperar a intuição que deram origem a elas. Isso vai envolver um processo de escolha.


Tal tarefa significa percorrer várias dimensões do pensamento humano, não para discuti-las como se delas fossemos simples partícipes ou militantes, mas buscando renovar as questões essenciais da psicanálise. Essas são questões que não se encerram com respostas, e que mantém o seu vigor toda vez que as refizermos. Vale lembrar aqui a máxima de Maurice Blanchot citada por Bion, graças a André Green; la réponse est le malheur de la question.


A mudança de vértice é parte intrínseca do trabalho de psicanalista, por isso é essencial não ignorar o lugar da Arte no domínio da criação de Linguagem e da palavra. Na realidade precisamos encontrar um modo de nos alimentarmos da Arte.


Tampouco o artista está isento da inquietação produzida pela psicanálise desde os seus primórdios. Ambos se deparam com o sentimento de que algo sempre escapa às interpretações, e este algo é justamente aquilo que constitui a essência da Arte e o vigor da obra, bem como o objeto da psicanálise e sua prática.


Dizer neste ponto que se trata simplesmente do Inconsciente não basta. Soa simples, para um assunto que é complexo. Por exemplo, dizer que o psicanalista deveria tentar retratar seu analisando como se fosse um artista, ao se assegurar que o artista, de algum modo, vem retratando o que a psicanálise encontra na clínica. Creio que mencionar o paradigma Shakespeare é suficiente para ilustrar essa tese. Não há superioridade lógica no psicanalista ou no cientista em relação ao artista. O que existe é apenas uma diversidade lógica, uma complexidade.


Pelo vértice filosófico, poder-se-ia dizer que a temática de Bion o aproxima da melhor tradição do conceito kantiano de verdade, democraticamente inacessível para todos. Nem artista, nem cientista, nem psicanalista a possuem. No máximo conseguem usar a imaginação produtora em seu lugar, nas tentativas de aproximação do que sempre escapa.


Poder-se-ia também dizer que Bion se aproxima do paralelismo disjuntivo adotado por Spinoza para dispor sobre a relação entre a sanidade e a loucura. Não há ilogicidade na loucura, nem logicidade na sanidade, apenas trata-se de estados que possuem uma lógica paralela, disjuntiva, à suposição de “normalidade”. Não há dialética, apenas uma dialógica. Não queremos eliminar o mistério e nem apaziguar a inquietação de pensamento, mas manter o vigor criativo.


Não é preciso ir muito longe para, quando se trata de Bion, deduzirmos que estamos diante de uma ética trágica, o que nos leva desdobramentos da investigação sobre o espectro onde ocorre a interação entre as partes psicóticas e as partes não-psicóticas da personalidade.


Bion, de posse da ética trágica, realiza a transposição do conceito vazio filosófico de verdade para a prática intuitiva psicanalítica, e faz emergir no início da década de 60, uma Teoria do Pensar e, com ela, uma ética de pensamento psicanalítico que vai se desdobrando nos textos seguintes. Em Transformações (1965) ele nos faz defrontar com “O”, um Onthos inacessível que aparece num “Opus” constante. Um leva ao outro, mas nada se detém.


Podemos acompanhar a presença dessa forma de pensar de Bion, e sua evolução, em todas a Conferências da década de 70: Buenos Aires, Rio de janeiro, São Paulo, Brasília, Nova Iorque, Roma. Em Paris não é diferente. O método de apresentação de Bion é inconfundível. Ele exige que seus interlocutores e ouvintes não o tomem como professor, nem como homem de saber, nem como líder de uma escola, mas como um psicanalista com suas dúvidas e incertezas, com toda indecidibilidade e incompletude das interpretações e, sobretudo, deparando-se com a complexidade que o campo da psicanálise nos impõe.


Ele parte do fragmento de um caso. Trata-se de um paciente que se apresenta para uma entrevista inicial. É significativo que não ouvimos falar do paciente sem ouvir simultaneamente do psicanalista. Quanto ao paciente, ele sugere-nos a imagem de um poliedro, uma figura multifacetada, que de acordo com o ângulo observado mostra uma faceta diferente de idade. Quantos anos de idade têm o paciente se cada faceta revela uma idade diferente?


Obviamente Bion não irá se deter em buscar uma determinação exata, mas ressaltar o fato de que a observação analítica é em si mesma uma visão multifacetada, cujo correspondente na linguagem só pode ser um, à saber: o mito. Daí a pergunta se transforma: qual é o mito particular do paciente que fala a partir de idades diferentes e presentes na mesma pessoa? É na criação deste mito que se instala a mobilidade da relação analítica. Caso contrário, cairemos na transformação em alucinose. A transformação em alucinose é exatamente julgar que sabemos o que é a montanha sem termos a visto de todos os ângulos.


Sabemos que Freud colocou o mito de Édipo como elemento nuclear da neurose, e fez dele a base para investigar os sentimentos de amor, ódio, ciúmes, rivalidade, que estão presentes nos aspectos essenciais do desenvolvimento sexual. As investigações subseqüentes foram enriquecidas por importantes contribuições que se referem ao conteúdo sexual do drama e às interações entre os pares ativo/passivo, masoquismo/sadismo, libidinal/agressivo, indivíduo/cena primária. Com Melanie Klein, o mito passa a ser investigado desde as relações mais precoces da vida mental. Bion agregou a dimensão intrauterina, o psiquismo fetal, traduzido pela pré-concepção. Foi havendo evolutivamente um detalhamento.


Bion aproximou-se através da ética trágica de uma psicanálise que encara aqueles elementos que foram deslocados pela ênfase psicanalítica no sexual.


Estou colocando essa frase num sentido inverso do que habitualmente se pronuncia, para ressaltar o imenso campo da questão metafísica central da verdade que ele abriu.

Sem excluir a importância essencial da sexualidade, mas colocando-a para dialogar com a busca de verdade, Bion (1957) assinalou inicialmente na função narrativa do mito os elementos arrogância, curiosidade e estupidez que atuam contra o saber, propondo que eles captam, no mito, a presença da parte psicótica da personalidade. Posteriormente, em Aprender da Experiência (1962) destaca que o vínculo K (a sede de saber) é tão essencial ao ser humano como o Amor (vínculo L) e o ódio (vínculo H).


Para Bion, o mito de Édipo é base do aparelho de aprendizado desde os primórdios do desenvolvimento mental. Há uma pré-concepção edípica que opera como precursora de uma importante função da personalidade na descoberta ou no conhecimento da realidade psíquica. Esta pré-concepção, o embrião das demais concepções e conceitos, conduzirá à investigação da relação com os pais reais ou substitutos (mundo externo). Por isto Bion postula o “o mito de Édipo privado” formado por elementos-alfa, e sugere que é um importante fator na “função psicanalítica da personalidade”.


O “mito de Édipo privado” (private Oedipus myth) atende ao princípio ético-estético da singularidade, funda o crescimento mental, e pode sofrer ataques destrutivos da parte psicótica da personalidade, quando então encontraremos os sentimentos de inveja, voracidade, sadismo articulados através da arrogância dos personagens que se opõem ao conhecimento. As conseqüências do ataque incidem sempre sobre o “learning appparatus”, a intuição, e impedem o desenvolvimento da função psicanalítica da personalidade.


Cabe mais uma vez assinalar que o elemento fundamental na conexão estabelecida por Bion entre o artista e o psicanalista é sempre a criação, isto é, a capacidade de escutar o que não está diretamente dado no material do analisando. Os termos imaginação e imaginário devem ser aqui pensados em conjunto. A imaginação (imagem-em-ação) não é apenas a capacidade de combinar elementos já dados para produzir um outro; é a capacidade de colocar uma nova forma. Utiliza-se de elementos que aí estavam, mas a forma, enquanto tal, é nova.


Sem dúvida, Bion nos confronta também, através da ideia de realização da pré-concepção, com a imaginação radical que é produto do acaso na vida mental, podendo significar a mente não nascida, ou embrionária, e a imaginação produtora que é produto das escolhas, influenciadas pela primeira, enquanto permanece desconhecida.


A imaginação não é simplesmente a capacidade de ver “figuras”, imagens, ou se ver num “espelho”, mas a capacidade de estabelecer o que não é, e ver alguma coisa mais além do senso comum. A imaginação, por essa razão, muitas vezes se choca com o grupo.


No final de sua obra, os aspectos criativos da mente, resultantes ou representantes da função psicanalítica da personalidade, se revelam na radicalidade de um outro conceito que Bion nos traz: o conceito de cesura.


Embora não mencionado diretamente na Conferência de Paris, o conceito está implícito na forma de apresentação. Em qualquer momento, se não nos deixamos impressionar pelos elementos da memória, do desejo, da necessidade de compreensão e da impressão sensorial, nossa mente recupera a plasticidade de movimento transitando pela cisão temporal, estabelecendo vínculos insuspeitados, criando conjecturas, enfim, exercendo a imaginação. Tudo é metaforizável.


Sendo assim o psicanalista pode entender que o nascimento psíquico pode libertar-se da idéia do nascimento físico e perceber que “a palavra catástrofe (alusiva ao conceito de mudança catastrófica e transformação em O) deve ser entendida a luz de algo que vai à direção oposta... breaking down é também muito próximo da metáfora breaking up”.


Catástrofes são aqueles fenômenos cujos estados internos ou cujas formas exibem mudanças abruptas em função de suaves variações de determinados parâmetros (variáveis externas). Estas catástrofes não têm, necessariamente, a conotação de desastres, podem ser fenômenos tais como a ebulição da água, a arrebentação de uma onda, a configuração final de um terreno sob ação da erosão, a mudança de atitude de ataque para fuga (e vice-versa) nos animais sob ação da raiva e do medo, as diversas fases na evolução de um embrião, isso para citar apenas alguns exemplos.


Um dos problemas centrais estudados pela espécie humana é o problema da dinâmica das formas. Qualquer que seja a definitiva natureza da realidade, é inquestionável que nosso universo não é um caos. Nós percebemos seres, objetos, coisas para as quais nós damos nomes. Esses seres ou coisas são formas ou estruturas equipadas com algum grau de estabilidade; eles ocupam alguma parte do espaço e duram algum período de tempo. Embora um dado objeto possa existir em diferentes formas, nós nunca falhamos em reconhecê-lo; este reconhecimento do mesmo objeto na infinita multiplicidade de suas manifestações é, por si mesmo, um problema (o clássico problema filosófico do conceito), pois precisamos reconhecer que o universo é criação, evolução e destruição sem cessar de formas e que o propósito da ciência é estudar essas mudanças.


René Thom, o matemático francês, primeiramente, constitui teoria no sentido de um “grupo coerente de proposições gerais usadas como princípios para explicação de uma determinada classe de fenômenos”.


Neste contexto, assim como a Teoria da Gravitação de Newton formula-se para explicar os fenômenos de atração entre os corpos celestes e sua evolução espaço temporal, a Teoria das Catástrofes aborda descrição, explicação e classificação dos fenômenos descontínuos ou catástrofes na terminologia de Thom.


No terreno puramente matemático, onde o termo teoria designa “um corpo de princípios e teoremas sobre um determinado objeto matemático”, a Teoria das Catástrofes tem como objeto de estudo as famílias de funções diferenciáveis dependentes de parâmetros. Estas famílias, convenientemente elaboradas, fornecem um dos instrumentos mais adequados para a descrição e classificação das catástrofes.


Uma aplicação das ideias sobre catástrofe se assenta na hipótese da possível identificação de uma correspondência entre processos de morfogénese literária e morfogénese topológica. Contrariamente às reflexões vizinhas, orientadas da Literatura para a Ciência, o seu percurso delineia-se das estruturas científicas para as formas literárias, mais precisamente, da matemática específica da Topologia, para os campos da Poética. Nela se suscitam questões como: podem poemas ser analisados a partir de uma teoria geométrica dos Espaços? São, de algum modo, os processos artísticos determinados pelas mesmas leis que assistem aos processos de estratificação, conservação de estruturas e propriedades dos lugares topológicos? De que modo a nossa leitura estética resulta condicionada por esta lógica das formas? Até que ponto a identidade artística resiste a uma tal intromissão da Ciência?


Na perspectiva de René Thom, segundo a qual existe uma independência do substrato, de tal modo que as mesmas propriedades se mantêm qualquer que seja a sua matéria base. Assim, ao procurar encontrar uma projeção genérica dos objetos e transformações topológicos nos objetos e transformações propriamente literários, uma aplicação direta do essencial da sua Teoria das Catástrofes à matéria poética é possível.


A convicção é de que a Poética, enquanto produto da Língua e da Linguagem, é o fruto de uma crescente complexidade, organizada e orientada pela função estruturante de um Eixo do Sentido. Deste modo, nela se deverão encontrar os mesmos processos e patamares de estabilidade, bem como as singularidades de fronteira e transição entre eles, que, identificados e sistematizados por René Thom, se converteram num marco notável da História e Filosofia da Ciência.


Através do modo peculiar como Thom se apropriou dos elementos fundamentais da perspectiva topológica, o trabalho de interpretação permitiu caracterizá-la como lugar efetivo de sucessivas catástrofes, o que deixou aberta a possibilidade de uma generalização de tal grade hermenêutica.


[1] A concepção espacial é inevitável se pudermos dar à relação in abstractio uma interpretação tangível e plástica”


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