O modelo espectral: uma mudança de Paradigma
Pelo vértice científico, um espectro é uma representação das amplitudes ou intensidades dos componentes ondulatórios de um sistema de frequências (ou comprimentos de onda).
Na Física, fala-se de ondas eletromagnéticas, visíveis e não visíveis, de acordo com a frequência e o comprimento de onda que lhes é característico. As ondas eletromagnéticas se propagam independentemente da presença de um meio material, e possuem velocidade máxima, referente à propagação no vácuo, da velocidade da luz: 300.000 km/s.
O olho humano só é capaz de discernir uma pequena parcela de todas as radiações eletromagnéticas existentes. O intervalo que pode ser percebido pelo sistema visual humano é denominado de espectro eletromagnético visível. O espectro visível inicia-se na frequência que corresponde à luz vermelha e termina na frequência da luz violeta. A sequência das cores no espectro visível é: vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta.
Ao adotarmos esse modelo para a mente humana, o objetivo é ter em mente que só podemos observar uma parcela dos fenômenos psíquicos que se desdobram a nossa frente e, a partir deste ponto, considerar um espectro muito particular, aquele que Bion denominou como espectro narcisismo-----social-ismo.
Esse espectro faz parte do objeto psicanalítico constituindo a parte que é observável pelo analista através de concepções e conceitos. O analista observa esses fenômenos em três grandes áreas que se expressam como ciência, arte e religião.
Quando pensamos em termos do objeto psicanalítico, supomos que as observações possuem significados que são influenciados pela complexidade das vicissitudes de um corpo biológico, que muda a todo instante, mas também pela complexidade de algo como são as pré-concepções que buscam realizações para formar essas concepções e conceitos. A complexidade implica em abordar esses fenômenos sem uma intenção resolutiva para não criar falsas questões. O risco das falsas questões são as falsas respostas que se instalam como verdades. O que então se faz? Problematizamos, multiplicamos as incógnitas, e assim vamos atingindo detalhamentos que causam áreas de turbulência, cada vez maiores, que colocam em ação a criatividade real. Em outras palavras, a turbulência aciona os sistemas auto-poiéticos que geram soluções adequadas. Todavia, são soluções abertas. Podemos dar como exemplo que a psicanálise gera mais psicanálise e que as coisas vão ficando cada vez mais sérias.
Antes de prosseguir preciso abrir parênteses para situar melhor nosso diálogo de hoje, pois ele envolve uma possível mudança de paradigma na obra de Bion.
Eu digo “possível”, para deixar em aberto para os colegas e interlocutores decidirem por si mesmos sobre sua real existência. Mas, penso que de fato ela existe, e surge como decorrência do uso que Bion fez progressivamente dos sistemas abertos. Tais sistemas são configurados pelo universo dos objetos complexos, não-lineares, não-explicativos, em oposição aos sistemas simples, lineares, que são explicativos e diagnósticos_ estes últimos, mesmo que se abram para acolher elementos novos, voltam logo a se fechar. O objeto psicanalítico é um exemplo de objeto complexo e apresenta em seu cerne um modelo espectral.
O conceito de espectro também se aplica à dualidade partícula-onda, que foi bem estudada pelo físico Werner Heisenberg, e o levou a formular o princípio da Incerteza.
Em termos teóricos, a ferramenta matemática que extrai um significado no domínio do tempo de cada um dos componentes de um espectro é a transformada de Fourier [1].
No domínio da psicanálise podemos considerar uma transformada de Fourier aplicada aos processos de transformação que Bion descreve.
Por exemplo, podemos estabelecer que o objetivo de uma análise é a transformação em O a partir de uma transformação em K. Assim, a transformação de K em O (transformação analítica) depende da função alfa ser aplicada na relação de invariantes e variáveis que existem no campo analista e analisando; o resultado desta aplicação ao ser colocado em linguagem sempre será aquém daquilo que podemos observar do inconsciente em uma sessão. O que resta para ser observado decorre de ser um sistema aberto, que somente se expressa em um espectro de possibilidades de significado.
Os sistemas abertos têm sua primeira grande expressão no trabalho em que Bion descreve um modelo espectral de partes psicóticas e não-psicóticas da personalidade (1956). Entretanto, ele não se dera conta inteiramente nesta ocasião da alteração de paradigma.
Isso acontecerá logo em seguida, no trabalho “Sobre Arrogância” (1957), quando Bion faz uma releitura do mito de Édipo sob o vértice da parte psicótica da personalidade, e mostra que a questão metafísica central da psicanálise é a investigação da Verdade_ com isso ele não apenas faz uma leitura pelo vértice de uma ética trágica (o elemento principal não está em cena), mas, sobretudo, ampliando as possibilidades de utilização do mito edípico, e entendendo a psicanálise como um sistema eternamente aberto.
Um modelo espectral traz a questão da Infinitude, pois, como a própria palavra espectro indica, não tem limites estruturais ou hermenêuticos.
Podemos dizer que o modelo segue a epistemologia dos conjuntos infinitos de Cantor [2], ampliada pelos modelos probabilísticos e os teoremas de Indecidibilidade de Kurt Gödell [3], até chegarmos na Física Quântica com o Princípio da Incerteza de Werner Heisenberg [4].
Na ciência temos diversos desdobramentos dessas ideias, tais como a teoria dos fractais [5], a teoria do Caos [6], e finalmente a Teoria da Complexidade de Edgar Morin [7].
Em geral, os sistemas abertos alteraram uma sucessão de elementos na forma de pensar sobre o campo analítico. Vou mencionar alguns que consigo identificar no pensamento de Bion:
Ontologia – pré-concepção (base da Teoria do Pensar), “O” das transformações, mente embrionária. O inconsciente se origina nas pré-concepções.
Epistemologia – sistemas abertos > experiência emocional > objeto psicanalítico > campo (Grade) > Grade avançada > cesura
Metodologia – trabalhar sem memória, sem desejo e sem necessidade de compreensão; capacidade negativa; ato de Fé, linguagem de êxito, simetrias.
Logica – Onthos inacessível que se desdobra em Opus infinito: “O”. Lógica das Transformações e simetria. Holografia.
Prática – Transformações, Cesura, Simetria, Linguagem de Êxito, Futuro da Transferência.
Após apresentar o trabalho sobre Arrogância, podemos acompanhar em Cogitações (p.117 e 133) Bion conjecturando sobre o modelo freudiano. Entre 31 de janeiro e 1 de fevereiro de 1960, Bion escreve que podemos empregar os termos narcisismo e social-ismo para descrever duas tendências, uma egocêntrica e outra sociocêntrica.
Afirma que tais tendências são iguais em quantidade e opostas em sinal. Ou seja, temos o –Y para narcisismo e o +Y para social-ismo. A razão para usar a letra Y repousa no fato de que Y se pronuncia (Why?) Sugerindo que a capacidade de fazer perguntas aumenta ou diminui com a polaridade.
Assim, se em um determinado momento os impulsos amorosos estão no polo narcisista, como numa paixão amorosa, altamente individualista e egocêntrica, então os impulsos de ódio serão social-istas, isto é, dirigidos contra o indivíduo e vice-versa: se o ódio, como parte da tendência narcisista, for dirigido contra um indivíduo, então o grupo será amado social-isticamente.
Se o amor é narcisista ele não questiona nada, mas o grupo (social-ismo) vai questionar com ódio porque tal amor existe. Se o amor está no polo social-ista vai fazer muitas perguntas sobre o individualismo do polo narcisista e isso lhe desperta ódio.
Vou dar um exemplo prático da realidade atual, um Ministro do STF profere por causa da pandemia um voto contrário à abertura de igrejas e templos (que sabemos vem respeitando a distância social, uso de máscaras etc), mas não fala nada sobre o transporte público hiperlotado e das festas clandestinas de fim de semana realizadas por governadores e senadores da República.
Se esse Ministro lesse a fábula de Dostoievsky O Grande Inquisidor, poderia aprender bastante sobre como situar os termos ideologia e cultura, ao invés de confundi-los para justificar suas teses. Ele colocou em suas teses a cultura no polo narcísico e a ideologia, que rege sua vida, no polo social-ista. Ele confunde os termos por conta do seu narcisismo, e isso que significa que na realidade ele odeia o social-ismo. No polo social-ista o indivíduo é capaz de fazer perguntas, indagar-se sobre a veracidade dos fatos, mas se está no polo do narcisismo não indaga e acata qualquer coisa que venha de ideologia ou religião, o que dá no mesmo.
O grande escritor russo mostra a volta de Cristo à cidade espanhola de Sevilha na época da Inquisição. O Inquisidor-Mor, um velho de noventa anos, termina encarcerando Cristo por temer as consequências de seu contato com o povo. O Inquisidor afirma que a volta de Cristo é inoportuna, pois seu amor maior é incompatível com o poder religioso vigente.
O Inquisidor-Mor encarna uma das exigências básicas do poder no Ocidente: o da produção de verdade por um grupo pequeno narcísico, tenho como consequência a submissão e obediência do povo como sendo os elementos capazes de trazer a paz ao indivíduo, e a salvação do mundo. Ou seja, odeia o polo social-ista.
Cristo é um perigo que pode abrir as comportas da liberdade humana. Cristo não envergou a toga de César nem fundou nenhum império jurídico. Ele certamente nunca disse que os homens estariam livres se confiassem sua liberdade a instituições inquisitoriais. O que esse Narciso do Ministro fez é a mais absoluta ideologia do individualismo, a ideologia do Inquisidor. Sob a pretensa fala de um discurso preocupado com o social-ismo, ele ama na verdade o seu individualismo, e odeia o social-ismo que demandaria a justiça de indagar as reais fontes de destrutividade da segurança da saúde pública.
Outro exemplo um vereador do Rio de Janeiro, conhecido por Dr. Jairinho, juntamente com sua mulher, assassinam o filho dela. Os requintes de crueldade do ato só se têm notícia, em tempos recentes, naquela praticada por nazistas em campos de concentração, ou seja, não basta matar, é necessário primeiro torturar e maltratar bastante.
Mas, infelizmente, esses atos não ficam restrito aos nazistas. Eles vêm fazendo parte do lado mais sombrio da história da humanidade. O lado da humanidade que quer aniquilar a si própria, matar todas as esperanças e sonhos, enfim tudo que uma criança pode significar.
As ideias em torno do tema na psicanálise foram abordadas de uma forma muito profunda pelo psicanalista francês, já falecido, Serge Leclaire. Ele assinala que essa é a ideia mais inquietante, mais evitada e mais terrível de todas. Sua origem fica sempre conectada às ideias que Freud chamou de pulsão de morte e narcisismo primário.
A ideia é tão dolorosa e terrível que até mesmo a maioria dos autores psicanalíticos, que se detiveram no estudo do mito do Édipo, pensaram nas questões do parricídio e do incesto, deixando de lado a tentativa de infanticídio que é fundamental na trama.
Além do mito de Édipo, o infanticídio tem sido representado em muitos mitos. Podemos lembrar a história de Abrahão na Bíblia, o Rei Herodes que manda matar crianças com receio que dentre elas surgisse o novo Rei dos judeus, o Faraó Ramsés I mandando matar crianças judias que poderiam tomar o trono.
Contudo, em todos os mitos existe o sentimento de compaixão, seja por parte de Deus que impede Abrahão de cometer o ato, dos pais de Jesus que amorosamente o protegem fugindo para outra cidade, da irmã de Moisés que o coloca num cestinho no Rio Nilo para uma princesa adotar o menino.
Além do mais, essas histórias revelam algo que faz parte do dia a dia do psicanalista que são os impasses e os fracassos do amor. O fracasso do amor dos pais pelos filhos. Os filhos como vítimas do desamor dos pais. Mas o que causa esse fracasso? Leclaire nos explica que é o confronto dos pais com “Sua Majestade a criança”, que reina como um tirano onipotente. Ou seja, o destino vai depender de como os pais podem lidar com o que o tirano desperta. Ao entender e ajudar a minimizar a tirania da criança, os pais podem abrir espaço para o amor e a renunciar ao narcisismo poderoso. Num certo sentido, acontece para os dois lados, pais e filhos.
Mas o que acontece se o sentimento despertado é puramente inveja da criança maravilhosa? Uma inveja sem o seu neutralizador que seria a gratidão pelo que uma criança traz ao mundo. Essa inveja se transforma numa espécie de câncer mental e vai destruindo e torturando tudo, culminando na morte real da criança.
Cabem aqui para esses assassinos de crianças as palavras de Shakespeare em Macbeth: A vida nada mais é do que uma sombra que caminha, um miserável ator que se exibe e se agita em sua hora em cena. E depois não é mais ouvido. É como um conto contado por um idiota, cheio de som e fúria, sem significado algum.
No invejoso miserável a vida é uma sombra que caminha, ele só precisa ser ouvido por uma criança que sofre com suas agressões, e quando consegue não ser mais ouvido pela criança, que morreu, nada sente, pois foi um ator em cena representando um papel. Se lhe perguntarem o que a criança disse em sua agonia vai perversamente dizer: foi apenas um lamento idiota de uma criança chata, cheio de som e fúria, sem significado algum. Uma criança que incomodou profundamente ao narcisismo dos que deviam cuidar, ou seja, assumir a responsabilidade que confere o polo do social-ismo.
Funções, relação unívoca e Édipo
O conceito de funções é essencial para entendermos o que significa pensar usando um modelo espectral.
Função implica na noção de invariantes e variáveis presentes numa relação unívoca. Ou seja, significa que na relação entre dois conjuntos, A e B, todos os pontos do conjunto A podem se comunicar com o conjunto B e vice-versa.
As invariantes são os símbolos que permanecem inalterados num determinado contexto, enquanto os demais elementos são variáveis podendo receber valores ou interpretações distintas em momentos diferentes.
As invariantes criam um campo de variáveis, que configuram o um limite das operações. Inevitavelmente quem aplica o estudo das funções, precisa de análise funcional que, por sua vez, leva ao estudo das transformações e que, em circularidade, leva ao uso de funções. Esse desdobramento lógico se trata de uma diferença importante em Bion.
O uso do conceito matemático das funções na compreensão do mundo psíquico teve na reverie uma ideia altamente abrangente sobre a importância da função materna na origem do psiquismo humano. O bebê busca primariamente, não o seio, mas a mente da mãe; este encontro é que possibilita a amamentação que passa a ser vista como um ato mental complexo, uma experiência emocional, que se desenvolve para ambos, mãe-bebê.
O sucesso da função cria os elementos alfa, que são armazenados como memórias e arcabouços simbólicos para sonhos, pensamentos oníricos, e mitos e, de forma mais abrangente, os pensamentos e a barreira de contato que estabelece a separação entre consciente e inconsciente. A barreira de contato é espectral, ela somente tem em seus extremos funções. A intuitiva de um lado e a social de outro, mas as funções só fazem expandi-la, nunca devem ser usadas para limitá-la.
Note-se neste processo a existência sempre presente da relação triangular: a mente do bebê, a mente da mãe, o seio. Em outras palavras, em Bion ocorre uma radicalização das ideias sobre o complexo de Édipo originadas em Freud. Em Bion, a configuração edípica coincide com o humano_ a mente humana é edípica_ e por isso desde sempre tridimensional. Em outras palavras, somos seres condenados a uma existência mental. O bebê busca não o seio, mas a mente da mãe.
Existe, obviamente, a identidade com Freud e Melanie Klein a respeito do complexo de Édipo, mas no seio da identidade surgem diferenças. O Édipo em Bion é espectral, ele deriva das funções e não de estruturas.
Bion durante um período travou uma luta de paradigmas antes de lhe ficar claro que deveria empregar funções para compreender a mente. Observa que Freud postula que o conflito entre a sexualidade e o ego é somente um postulado. E enfatiza que o próprio Freud sugere que o estudo das psicoses pode requerer a modificação da teoria. Assim, Bion critica que usar a polaridade do ego e sexualidade pode confundir se levarmos em conta outras circunstâncias que o conceito de polaridade do ego não atende. Por exemplo, o que acontece com as polaridades se o ego é destruído por ataques de cisão? Se não existe o ego como a mente poderia funcionar? A noção de ego, por ser estrutural, cria o pensar em um campo fechado, impedindo pensar no significado de termos como enfraquecimento da plasticidade, vulnerabilidade e fragilidade do ser humano, quando afetado pela parte psicótica da personalidade. Por essas razões Bion sugeriu o modelo espectral narcisismo/social-ismo.
Particularmente prefiro usar o termo autonomia social ao invés de social-ismo. Fica incômodo estar o tempo todo tendo que dizer que o termo é com hífen para não confundir com ideologia.
Autonomia social significa poder continuar sendo eu mesmo apesar das pressões grupais. Nunca ceder se o grupo vai contra minhas fundamentações éticas. Também nunca confundir moral com ideologia, nem lógica com verdade.
Pré-concepção
O significado do elemento inato na teoria de Bion (invariante da função) passa a ser apenas a inescapável busca pela mente do outro, seja a da mãe, casal, família, grupo social, mas sempre a busca por uma mente capaz de acolher comunicações das necessidades e incompletudes. Mas o elemento inato nada significa sem a experiência emocional.
A pré-concepção, sendo em última instância edípica, é um sistema aberto e se estende de forma espectral. O seu modelo recebe o recurso da abstração matemática das funções F (x), traduzido pela expressão Ψ (ξ), das letras gregas Psi/ksi: sendo Ψ a parte inata, e (ξ) a parte espectral não saturada e dependente da experiência emocional.
As ideias de Bion sobre a pré-concepção posteriormente se ampliam no estudo das transformações em “O”, e na descrição da mente embrionária que aparece mais claramente nos chamados four papers: Turbulência Emocional, Evidência, Sobre uma citação de Freud e, Como tornar proveitosos um mau negócio (1994).
Tenho procurado mostrar em diversos trabalhos que as ideias de Bion sobre a pré-concepção coincidem com os conceitos modernos de neotenia. Penso que Bion intuiu a tese de que a espécie humana sobreviveu e evoluiu graças a uma solução que fez com que os bebês da espécie fossem nascendo cada vez mais imaturos. Com o aumento da imaturidade dos bebês a espécie humana diminuía a influência do inato, e aumentava a capacidade de aprender da experiência. Essa solução possibilitou adaptações às mais variadas condições geográficas e climáticas. Radicalmente distinto dos outros seres vivos, o ser humano vive em qualquer lugar do planeta, pois coloca a experiência adquirida, não no DNA, como os demais seres vivos, mas na enigmática mente, cujos registros são transmissíveis pela linguagem e pensamento que passaram a adquirir características impressas testemunhadas pelas pinturas rupestres e outros sinais inequívocos da produção de uma memória externa. O mental foi sempre o fator decisivo de sobrevivência.
Todas as consequências dessa mudança ontológica se desdobram na importância do grupo para proteger os bebês, no registro de informações na fala e na escrita para transmissão geracional, no uso inequívoco da inteligência para se organizar e observar a natureza, ter vivências de tempo, e no domínio das mais variadas tecnologias.
O espectro reverie / Função alfa
Função alfa –– Reverie
O emprego do modelo matemático das funções no conceito de reverie, ampliou-se para investigar sua extensão nas relações e no desenvolvimento humano através do conceito de função-alfa. Desta forma_ a pré-concepção após ser acolhida pela reverie_ vai aparecer e se desdobrar no mundo simbólico como função alfa, termo epistemologicamente coerente com o sistema aberto que deve estar pleno de incógnitas para gerar o que pode ser chamado de um looping autopoiético (Chuster, 2011, 2015).
Uma adequada descrição da função alfa espectral penso que podemos fazer ressaltando que a mãe não funciona sozinha, mas encontra um suporte na mente do casal- unido- sexualmente, que por sua vez encontra suporte na cultura da família, que encontra suporte na mentalidade da sociedade, e que encontra suporte na mente criativa, que é produto final do conjunto e produtora da busca e encontro de soluções para a cadeia de interações complexas. Trata-se de um looping autopoiético que pode ser representado pelo modelo holográfico, onde cada parte representa o todo e, obviamente, o todo só pode ser entendido pela soma de suas partes [8].
O modelo reverie/função alfa é um sistema aberto, um espectro de infinitas possibilidades, no qual em um polo temos a reverie como função predominantemente sensorial, e no outro polo, a função alfa, predominantemente simbólica. Elas são simétricas e complementares, e sobre ambas se aplica o princípio de Indecidibilidade da origem (Gödell): ou seja, não podemos determinar onde uma termina e a outra começa. Existe uma simetria, ao longo da vida, e em certos pontos contradições insolúveis, emaranhados, e elementos intrincados. Mas a convivência com eles é que permite as soluções (complexidade).
Uma Teoria da Percepção/Observação de elementos da Psicanálise
As ideias utilizadas por Bion, naturalmente me levaram a um pensar sobre a noção de um campo complexo. Na falta de modelos adequados precisei me dedicar a estabelecer princípios epistemológicos, o que me levou a descrever o campo analítico regulado por Princípios ético-estéticos. São eles, Incerteza, Infinitude, Incompletude, Indecidibilidade, negatividade, singularidade (Chuster, 1999, 2002, 2015).
Considero que esses princípios são meramente o que Bion chamou de necessidade psico-lógica (Bion, 1965). Diante do indecidível torna-se necessário criar temporariamente um terceiro ponto (ou um terceiro elemento) que, por sua vez, funciona como fator de decidibilidade para o momento da observação, mas, que não funciona para outro momento. O que é conhecido torna-se irrelevante ou falso. E a observação só é aplicável para aquele momento. Novamente nossas conclusões alcançam o espectro.
A radicalidade desta ideia em Bion alterou a concepção do processo analítico, sobretudo, quando ele fala de função psicanalítica da personalidade (1962b) _ que vem a ser uma habilidade humana_ variável com as muitas circunstâncias internas e externas_ e que o processo analítico não pode fornecer, mas apenas ajudar a descobrir e desenvolver, se conseguirmos socraticamente trazê-la para o campo.
Com isso, o processo analítico passa a ser mais significativamente o ato de um desenvolvimento protegido (Meltzer, 1996), e não um processo de resolução de conflitos pulsionais e ansiedades derivadas da concretude do mundo interno.
O modelo da Grade criado por Bion (1977) expressa a ideia de desenvolvimento da função dentro de um campo que precisa ser sempre cotejado com a questão do uso dos elementos. Desenvolvimento versus uso de elementos geram o campo analítico onde se constrói hipóteses e interpretações sobre o que está sendo observado.
Se a percepção é de uma totalidade global, uma generalização, sem tonalidade afetiva, o elemento é classificado como elemento beta. Se a observação se refere a detalhes de um objeto e tem a particularidade da tonalidade afetiva, o elemento é chamado de elemento alfa.
Os elementos alfa permitem criar um plano espectral que aparece nos sonhos, mitos e pensamentos oníricos, onde ocorre uma perceptível integração e sincronização entre pensamento, linguagem e ação. O primeiro passo para o que Bion chamou de vínculo K.
O vínculo K
Ficou muito claro com Bion, como mostrou Meltzer (1996), e Grotstein (2014), que o trabalho da psicanálise não tem nada a ver com processos de adaptação social e com os aspectos contratuais e casuais da vida mental. A psicanálise tem a ver com a intimidade psíquica, que por sua vez é produto do vínculo que integra o espectro dos sentimentos, ou seja, o vínculo K (Bion,1962b).
Trata-se de um vínculo que pode ser descrito pela holografia da relação entre sinceridade e confiança (Chuster, 2015, 2018). Quanto maior a sinceridade, maior a confiança, e à medida em que a circularidade se expande, gerando incógnitas e singularidades, forma-se a intimidade psíquica.
As ideias sobre o vínculo K são da ordem da complexidade não linear, que envolve noções matemáticas como o espaço de Hilbert [9], e os planos de Riemmann-Lobatchevsky da geometria projetiva algébrica [10], ou seja, não se resolve um problema sem criarmos uma “regra” para desdobrá-lo em muitos problemas e detalhes_ pois, aumentando-se as incógnitas, cria-se novos planos, abre-se espaço para um novo sujeito, no qual aumenta-se as possibilidades de solução.
Bion coloca o papel do analista num plano muito mais modesto, socrático, e muito próximo do Princípio médico primum non noscere [11]. A psicanálise torna-se mais difícil e complexa. Mas, como já foi tantas vezes dito, ela pode se tornar muito mais interessante.
O conceito de serendipidade (Chuster, 2018) pode ser aqui aplicado: o prazer de praticar psicanálise, como uma arte, depende de uma mente preparada (capacidade negativa) para viver o acaso das descobertas proporcionadas pelo pensamento imaginativo.
O vínculo K não pode ser confundido com conhecimento. O que a gente conhece não é o vínculo K, pois ele é aquilo que ainda não sabemos e do qual nos ocupamos numa direção que tem um parâmetro inatingível: a busca da verdade. Mas se é inatingível porque se ocupar dela? Por uma única razão, a questão nada tem a ver com a verdade, mas com a expansão mental. Isso significa um ato de Fé.
O ato de Fé é somente uma intenção que permite com que nossa mente se prepare melhor para o campo analítico, se puder conceber que na questão da busca da Verdade, existe complexidade, e por isso não sabemos onde parar com a investigação.
Em outras palavras, se a Verdade é o centro da atividade analítica, ou seja, se no centro temos algo inacessível_ seja no processo em si como na ontologia dos elementos do analisando_ tudo que se pode fazer é criar, isto é, tentar imaginar o que seria a verdade_ por um momento_ caso pudéssemos nela chegar. E como o que mais se cria na mente são pensamentos, sentimentos e ideias, uma Teoria do Pensar foi o caminho natural de quem pensou a psicanálise desta forma (que podemos chamar de ética trágica). O uso da imaginação ganha então em Bion um papel decisivo.
Para que a imaginação tenha lugar é preciso que o analista evite a relação com o casal memória e desejo. Memória é feminina, desejo é masculino. A memória procura um desejo que a penetre e o desejo procura uma memória para penetrar. Os dois juntos no leito sensorial, produzem um terceiro, a necessidade de compreensão que passa a decidir sobre tudo que ocorre. Esse bebê edípico, formado pelo casal memória e desejo, produz interpretações que distorcem as observações feitas. É preciso então que funcione um outro casal continente e conteúdo, livre dos desejos edípicos e pontos cegos do analista.
De uma forma, mais poética, consegue-se isso usando a capacidade negativa, que é a capacidade de tolerar as incertezas, os mistérios e as meias verdades sem a interferência do bebê que fica ansioso para ter compreensão e chegar a uma razão qualquer.
Considero um traço de forte genialidade de Bion ter descoberto que memória e desejo atraem os desejos edípicos do analista e obscurecem a percepção. São como grilhões que impedem de ver a luz.
O vínculo K, a Teoria do Pensar e a Transferência
A ênfase da experiência analítica colocada pelo vínculo K é no futuro da transferência: Do ponto de vista prático, significa que o saber da sessão de ontem não me serve mais, apenas aquilo a que estou me dedicando a investigar hoje_ e que não está completo_ e pode me conectar ao futuro: a sessão de amanhã.
O trabalho é difícil, pois o momento do Saber que conduz ao Ser precisa ser construído, precisa de simetrias nessa construção, e só pode ocorrer em alguns momentos, que descrevo usando a metáfora do amanhecer e do entardecer. Trata-se daqueles momentos de luz e sombra, momentos que consigo ver algumas coisas e outras não, momentos onde existe um faixo de intensa escuridão, momentos que se alternam entre um amanhecer que não permite ver o que está próximo, e momentos de entardecer que não permite ver o que está ao longe.
A ideia de campo de investigação foi notavelmente colocada pela Teoria do Pensar de Bion (1962a). Ele enfatizou que a psicanálise é uma resposta prática para questões filosóficas (ou seja, questões da vida), desde que essa relação seja regida pela mesma relação que existe entre a matemática pura e a matemática aplicada (ou seja, a psicanálise precisa possuir um campo que estabeleça seus limites e limitações, e que criem princípios epistemológicos que a afastem de hábitos cegos, crenças e repetições vazias).
Em outras palavras, a psicanálise precisa ser tratada cientificamente, mas isso apenas significa dizer para as outras ciências (que disso duvidam), que se trata de uma atividade única na história da humanidade. Sua distinção é de tal ordem que não tem como dar satisfações a outras ciências. Porém conserva a identidade com as ciências que é o interesse na busca da Verdade. Entretanto, na psicanálise esse interesse tem o significado de um ato de Fé (Bion,1970), e que não tem nada a ver com a Verdade em si, mas sim com a capacidade de criação. Nesse viés nietzschiano, guinada filosófica que Bion realizou nos anos 70, diferencie-se estado mental de Fé presente no religioso, do ato de Fé do cientista e do psicanalista.
A Teoria do Pensar cria o campo da pré-concepção que se realiza por um espectro infinito de possibilidades de concepções e conceitos, regido pela complexidade do princípio da Incerteza. Concepções são pensamentos com os quais relacionamos com nós mesmos, e conceitos os pensamentos com os quais nos relacionamos com os outros, com o grupo. Eles fazem parte do já mencionado espectro observável do objeto psicanalítico. Bion o descreveu através da expressão espectro ±Y, que contempla dois polos de realização: o polo do narcisismo (–Y) e o polo do social-ismo (+Y) (O termo usado para um dos polos por Bion contém a precaução de diferenciar de uma ideologia, por isso colocando o hífen na palavra (social-ismo). Todavia ao estudar a questão por volta de 1958, ele ainda não tinha tido essa precaução (Cogitações, p.122).
Talvez possamos substituir social-ismo pela expressão autonomia social ou aquilo que nos leva a criação de consciência social.
Nas primeiras incursões no tema, Bion descreve que o amor pelo grupo corresponde a um ódio pelo individual e vice-versa. Uma espécie de pendulo onde os significados se encontram em uma tensão permanente e em constante alteração. A expressão turbulência emocional irá desfazer a preocupação em considerar as questões que causavam na época um impasse conceitual ao usar as ideias de Freud em Os Instintos e suas vicissitudes. Ideias que se preocuparam em adaptar o conceito de ego em conflito com a realidade.
Por outro lado, o modelo espectral permite considerar apenas a fração intermediária entre o ego e o id e a realidade, ou seja, o superego como concepções e conceitos no espectro. Ou seja, como herdeiro do complexo de Édipo, o superego forma um espectro com as diversas concepções e conceitos produzidos pelas experiências, e com isso podemos descrever distintos superegos com as possibilidades de superego assassino, ladrão, traficante de drogas, corruptor da ética, contrabandista moral, até o ponto em que atravessamos para o espectro do social-ismo e passamos pela educação platônica, socrática, arte e ciência, e finalmente a consciência social complexa, que seria um outro extremo do superego assassino, o extremo do narcisismo.
Mais uma vez, essa é uma visão que tem o Édipo como seu referencial; pois podemos falar, de aspectos distintos do desenvolvimento humano, e até coloca-los numa Grade Negativa através de derivados de uma espécie de Pathos do Saber.
Por exemplo, uma obstinação por saber o que é melhor não saber, seria o elemento que predominando numa hipótese definitória faz uma escolha destrutiva. O furor que impede o pensar seria o elemento negativo na escolha entre falso e verdadeiro, fazendo prevalecer a resistência ao desconhecido e a escolha pela falsidade ou mentira. A recusa de reconhecer a verdade como ela se apresenta, o elemento destrutivo da visão da história (Notação) faz escolher a hipocrisia, a catástrofe do Saber insuportável pode ser o elemento que destrói a Atenção, e finalmente o Saber que obriga a subtrair-se totalmente do mundo visível, o elemento destrutivo da indagação.
A Grade, que é o formato inicial com que Bion transcreve suas anotações sobre a prática, pode ser vista de várias formas. Por exemplo, como um espectro que tem descrições apenas até um certo ponto, ficando em aberto o eixo horizontal. Este traduz a metodologia empregada pelo analista e suas modificações. Método de escolha (Hipótese definitória), método de dúvida (elemento Ψ), método de esclarecimento (Notação), método de Atenção, método da investigação (Indagação), método da linguagem (interpretação ou ação no campo analítico). Essa última sendo a escolha entre a Linguagem de Êxito ou a linguagem de substituição (1970).
Transferência e Objeto psicanalítico
A visão espectral sempre mostra a incompletude de todos os elementos psíquicos, e possibilitou descrever, como assinalamos, a transferência se movendo numa configuração circular e espiralada, que deixa de lado os conceitos clássicos de repetição, e correlativos ligados a teoria pulsional de Freud. Não os exclui porque se trata de um modelo complexo aberto a todas as possibilidades_ mas a ênfase na investigação mudou. As ideias de Bion tiveram neste ponto uma resposta inédita no objeto psicanalítico (1962b) e nas áreas de aplicação, descritas como um contexto ético-estético interativo das áreas dos mitos, sentidos e paixões.
Com o modelo do objeto psicanalítico, Bion mostrou que a configuração da transferência, pode seguir uma nova compreensão da teoria das posições de Melanie Klein. As posições em Bion são simultâneas criando uma permanente tensão psíquica. O processo de negociação entre elas, sempre difícil, vai se movendo com o quantitativo das forças presentes em cada uma delas. Por outro lado, a negociação_ sendo sempre tridimensional_ precisa sempre encontrar um terceiro que as integra, o fato selecionado, e que varia de acordo com o tipo de tensão entre as posições. Posteriormente, Bion descreve essa negociação usando a teoria das transformações (1965).
Gráfico representativo de forças psíquicas em permanente tensão e turbulência
Em resumo, a negociação entre as posições implica num processo de escolha viva (fatos selecionados), que pode significar tanto um processo criativo em direção a um Saber sobre si mesmo, como pode significar um processo destrutivo, caso a negociação escolha fatos (fatos selecionados) que movem o sentido espiral na direção de um desenvolvimento negativo. Daí a teoria das transformações levar em conta que se trata sempre de criação e destruição de formas.
Transformações: Onthos que se desdobra em Opus.
Na teoria das transformações penso que precisamos atentar para os elementos que compõem a pré-concepção e que dão continuidade as proposições da Teoria do Pensar aparecendo de uma forma nova com o designativo “O”. A noção de “O” é bem ilustrada na literatura pelo texto de James Joyce, Finnegans Wake. Trata-se de uma obra sempre em construção, um Opus.
Os elementos que perfazem o trajeto de algo que quando se supõe chegar ao fim nos conduz de novo ao início do texto inicial, são aqueles que compõem o que podemos chamar de pré-concepção ou arcabouço psíquico: espaço, tempo e profundidade. Espaço representa os conceitos, a intuição o tempo, e a profundidade, a resultante, que representa as concepções e conceitos que vão sendo criados. Podemos seguir essas ideias em Domesticando pensamentos selvagens, que foi a tradução do texto sobre o qual dedicar-se-á o próximo encontro Internacional sobre a Obra de Bion, em Ribeirão Preto. Todavia, gostaria de fazer um aparte para traduzir por observando pensamentos livres. Assim, temos os pensamentos com proprietários, os pensamentos desgarrados, os pensamentos livres, e os pensamentos sem pensador. Eles correspondem a graus de profundidade que podem atingir, sendo que pensar um pensamento sem pensador é algo que podemos pessoas na História conseguem fazer. Mas este tipo de pensamento está por aí em estado selvagem, crescendo na “selva” ou nos “profundos mares” ou no “cosmos” do inconsciente.
Outra forma de entendermos o processo de transformações descrito por Bion, consiste em considerar as formas de relações que podem se estabelecer entre continente e conteúdo. Nestas formas de relacionamento, a harmonia da comunicação entre continente e conteúdo pode se perder pelo aparecimento de outros elementos que se agregam a identificação projetiva usada como comunicação. Esses elementos começam a causar uma compressão do conteúdo fazendo surgir uma área de desarmonia. Essa área de desarmonia_ caso seja produzida pela intolerância a frustração decorrente da imaturidade dos objetos edípicos_ será preenchida por enganos e equívocos, característicos da transformação em moção rígida. Se a estes elementos acrescenta-se a violência dos objetos primitivos, teremos as transformações projetivas cujo elemento principal são as falsidades ocupando a área de desarmonia. Caso a inveja destrutiva e a inveja espoliativa aparecem, teremos um esmagamento maior ainda do conteúdo, e a área de desarmonia é preenchida pelo elemento característico que são as mentiras: são as transformações em Alucinose. Se o esmagamento prossegue ainda mais com aumento da intensidade de todos os elementos, então o conteúdo pode ser expulso do continente e teremos um quadro psicótico: um conteúdo orbitando e pedindo ajuda a um continente que não escuta.
Outras leituras da Configuração edípica
A descrição da configuração edípica ressaltando apenas o caráter tridimensional da mente humana, sem a saturação simbólica promovida pelo uso clássico dos personagens de Sófocles, aparece em vários pontos da obra de Bion.
Uma elaboração inédita em Bion, que aparece no texto Atenção e Interpretação (1970) se resume na ideia de que não se trata da dissolução do complexo de Édipo, mas da sua evolução ou involução. No texto Bion descreve três tipos de vínculos de acordo com a matemática de sua relação com a Verdade. O comensal (1+1=3), o simbiótico (1+1=1), e o parasitário (1+1=0).
São três tipos de configuração edípica, cada uma correspondendo a uma peça da trilogia de Sófocles. O comensal corresponde ao Édipo Rei, o simbiótico ao Édipo em Colona, e o parasitário a Antígona. As configurações se alteram, se alternam, evoluem ou involuem, de acordo com certos elementos que nelas predominam. Por exemplo, se predominar a busca de alimento mental com a verdade, a configuração será comensal, mas se esta busca for sobrepujada por onipotência e arrogância, a configuração mudará para simbiótica. Nesta, a arrogância mais voracidade alimenta a simbiose, mas se ocorrer onisciência mais inveja, a configuração muda para parasitária. Na parasitária o resultado é a morte do grupo.
Em conjunto represento os três níveis de possibilidades vinculares com a imagem de uma escada. Podemos pensar no jogo cobras e escadas, mencionados por Bion, em Cesura. Se o jogador cai numa cobra (H) existe retrocesso, mas se cai em K existe um pulo, e se cai em L simplesmente continua jogando.
Os elementos que permitem passar de um nível para outro podem ser descritos pela interpretação analítica. Por exemplo, na configuração comensal, quando existe um desvio para L pode ocorrer a busca de uma mente onipotente ao invés de uma mente que busca a verdade (K). Gradualmente, a busca por onisciência e onipotência pode desviar para H e transformar-se em arrogância, o que produzirá uma mudança de configuração: comensal para simbiótica.
No desvio para L temos a conhecida situação em que ocorre uma fixação na figura parental do outro sexo, e o rival passa a ser o do mesmo sexo.
Espaço, tempo, e profundidade, são elementos que se ampliam na medida que a tensão psíquica (turbulência) é enfrentada pela capacidade negativa – o que significa utilizar mais a intuição ou tolerar o tempo cego de observação cuidadosa até o ponto que essa pode ligar-se a um conceito que dará espaço para o desenvolvimento da observação.
A Prática, a técnica e a Cesura
Então investigue-se o conjunto infinito, não linear, não determinístico, complexo, não euclidiano: conceito=espaço, intuição= tempo, profundidade=pensamento. Investigue-se, em outros termos, a Cesura.
As ideias de Bion sobre a Cesura (1975) representam uma das diferenças importantes em sua obra, pois concebe de outra forma o trabalho e a noção de transferência. A Cesura é um termo basicamente da linguagem poética que sugere um modelo de trabalho no campo analítico a ser feito: não se trabalha a transferência, mas na transferência.
A Cesura é como se fosse uma entidade infinitamente plástica, capaz de surgir em qualquer lugar, fazendo uma conexão entre dois meios. Sua condição é puramente fantasmática, uma vez que passa a existir por causa dos elementos simbólicos que a identifica num determinado momento.
O momento da Cesura é determinado pela condição de um sujeito que aí se revela com a dimensão mais básica do ser humano: o tempo. Assim, a cesura é tempo, mas indivisível dos elementos, espaço e profundidade. Os três elementos que constituem a tridimensionalidade da mente humana_ como já ressaltei_ estão contidos como potencialidade no elemento inato da pré-concepção. Mais uma vez, reitero: o que é inato na pré-concepção é a disposição para buscar uma mente tridimensional. Esse processo não ocorre sem a cesura. Por exemplo, podemos falar de pré-natal e pós-natal, sono e vigília, consciente e inconsciente, finito e infinito, humor transitivo e intransitivo, transferência e contratransferência. Mas a relação entre os meios só pode ser nomeada com os recursos da linguagem. Tudo então depende de qual linguagem utilizar: Linguagem de Êxito ou Linguagem de Substituição? Se usarmos a primeira, usaremos a cesura, então teremos uma palavra combinada para abrir realidades infinitas. Não Eu e Tu, mas Eu-Tu, não transferência e contratransferência, mas a (contra-trans) - ferência. São palavras obtidas deste jogo bem-humorado que pode ser o analisar através da habilidade de fazer as perguntas difíceis (que são palavras combinadas), e que só tem respostas temporárias. São as perguntas essenciais, para momentos nodais da prática analítica. Momentos que cabe a escolha de um destino: breakdown, breakup, breakthrough.
A intuição sendo basicamente a expressão do tempo interno, tem sua parte que se pode chamar de contra-intuição ilustrada pela cena do chapeleiro louco em Alice no País das Maravilhas de Lewis Carrol [12]. A cena mostra como a perda da função do arcabouço psíquico- a pré-concepção – transforma o tempo em um espaço onde nada acontece e, consequentemente, sem profundidade e alcance. Se toda hora é hora do chá, não há intervalo, portanto, não há chá. Nesta cena temos também o personagem coelho que está sempre atrasado, mas o relógio que ele usa não tem ponteiros, ou seja, o relógio (o tempo) perdeu sua função ao perder os vínculos com o espaço e a profundidade.
Para terminar cito um poema sobre a intuição que significativamente ilustra as ideias de Bion sobre as quais estive discorrendo:
The way through the woods de Rudyard Kipling [13]:
A trilha da Floresta
Fecharam a trilha da floresta
Setenta anos atrás
Com chuva e vento da trilha hoje nada mais resta
Um guarda florestal
Foi o último que sua existência atestou
E a festa das rolinhas registrou
E dos texugos seu vai e vem natural na memória guardou
Mas da tal trilha nada restou
Hoje, se alguém na floresta entrar
No final de uma tarde de verão
E sentir a brisa que vem o lago refrescar
Verá que lontras estão a pescar trutas
Elas não temem os humanos
Não tem conceitos sobre tais seres estranhos
Então se você abrir a mente poderá escutar o galope dos cavalos
As esporas roçando os arbustos
Sinal de avanço firme e comandos robustos
Naqueles ermos enevoados
Passando a trilha com cuidados de exatidão
Mas... não existe mais trilha alguma
[1] Em matemática, a transformada de Fourier é uma transformada integral que expressa uma função com sinusoidal. Existem diversas variações diretamente relacionadas desta transformada, dependendo do tipo de função a transformar. A transformada de Fourier, decompõe uma função temporal (um sinal) em frequências, tal como um acorde de um instrumento musical pode ser expresso como a amplitude (ou volume) das suas notas constituintes. A transformada de Fourier de uma função temporal é uma função de valor complexo da frequência, cujo valor absoluto representa a soma das frequências presente na função original e cujo argumento complexo é a fase de deslocamento da base sinusoidal naquela frequência. [2] J.W. Dauben, Georg Cantor: His Mathematics and Philosophy of the Infinite; Cambridge, Massachusetts, 1979. [3] Kurt Gödell collected works, edited by Solomon Feferman, Clarendon, 2014 [4] The uncertainty principle, in. Stanford Encyclopedia of philosophy, 2017 [5] B.B. Mandelbrot, The Fractal Geometry of Nature; W.H. Freeman and Company, Nova Iorque, 1975. [6] Kellert, Stephen H. (1993). In the Wake of Chaos: Unpredictable Order in Dynamical Systems. University of Chicago Press. p. 32. [7] Morin, Edgar; Meus Filósofos, editora Sulina, Porto Alegre, 2012. [8] From Planck Data to Planck Era: Observational Tests of Holographic Cosmology. 2017, in Physical Cosmology Review.; tradução de Jefferson Padilha. [9] Young, Nicholas (1988), An introduction to Hilbert space, Cambridge University Press [10] Jost, Jürgen (2002), Riemannian Geometry and Geometric Analysis, Berlin: Springer-Verlag, [11] Smith, C. M. (2005). "Origin and Uses of Primum Non Nocere — Above All, Do No Harm!". The Journal of Clinical Pharmacology 45 (4): 371–377 [12] Lewis Carroll (2009). As Aventuras de Alice no País das Maravilhas: Relógio d'Água, São Paulo. [13] A tradução é minha.
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