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Um Ensaio psicanalítico sobre modalidades do Ódio

Atualizado: 9 de fev. de 2022

Considerações sobre os vínculos H e –H em W.R.Bion





No presente trabalho abordarei algumas possibilidades de expressão do ódio fazendo descrições, para as quais não reivindico nenhum status histórico, sociológico ou antropológico. Meu objetivo é salientar preferencialmente um tipo de transformação do ódio em crueldade causada pela parte psicótica da personalidade (Bion, 1957; Chuster, 2014, 2018). Para tal, as descrições devem ser consideradas apenas imagens que possuem uma qualidade mítico-poético-onírica.


Essas imagens podem ser usadas como hipóteses caso surjam livremente no decorrer do trabalho analítico. Elas são da ordem das memórias-sonho, metonímicas, ou seja, tema possibilidade de condensar uma série de teorias analíticas. Elas permitem observações e interpretações de vértices dos movimentos do vínculo analítico. O vértice que utilizo segue preferencialmente a Teoria das Transformações (Bion, 1965).


Como observação geral, a perda de limites produzida pelo ódio, ao ser transformado em crueldade pela parte psicótica da personalidade (Bion, 1957), não distingue lados, não tem partidos, não tem religião, nem cultura específica. Ódio e crueldade podem se manifestar em tudo e em todos, vir acompanhado das mais diversas justificativas e titulações, mas são sempre tóxicos e destrutivos para a mente humana. A presença deles produz estados confusionais de diversas gradações, com graus equivalentes de dor psíquica causada a si próprio e aos outros. Entendo que a ênfase do trabalho analítico deve ser colocada nesses processos confusionais, e na dor psíquica intensa que produzem.


No dia a dia do consultório, o psicanalista escuta todo tipo de narrativas provenientes do corpo social. Certamente que elas são trazidas por um desejo inconsciente, que move uma escolha, que é publicada para o analista. O psicanalista pode tomar como ponto de partida que o paciente está falando de um aspecto de si mesmo que desconhece em algum grau. Todavia, o importante é o vínculo analista/analisando, onde se pode trabalhar nas perspectivas de dentro para fora e de fora para dentro do “objeto” apresentado. Pode ser do público para o privado ou vice-versa.


Uma narrativa frequente na atualidade é a panfletagem nas redes sociais incitando o ódio, desvirtuando o objetivo inicial de trocas entre as pessoas. Os analisandos, através de suas associações, publicam para o analista tais narrativas, nas quais de algum modo se envolveram. Muitos esperam que o analista também desvirtue sua função e se envolva, tomando partido. Alguns querem acordos, muitos deles cruéis, pois implicam no analista deixar de ser quem ele é para atender as demandas que sempre envolvem julgamentos, avaliações, diagnósticos.


Nessas publicações, as narrativas parecem subscrever militâncias tendenciosas de seus operadores. Se tomamos como modelo o social, tais como as veiculadas pelas mídias oficiais, podemos observar identificações com os poderes que excedem em seu papel, a serviço do desvirtuamento do pensar. Tal exceção se desdobra em facetas do autoritarismo e da megalomania, expressões malignas do narcisismo humano operando com crueldade.


Como psicanalista, meu alcance é limitado, mas entendo que a existência de sentimentos inconscientes de culpa precipita a proliferação da capacidade para mentir e enganar, qualidade que está de algum modo sempre contida nas narrativas. Existe sempre muito espaço aberto pelo ódio para corrupção, desonestidade e fraude no corpo social. Penso que ao analista sempre cabe propor que se resgate o pensamento, ao destacar que no ódio não há o pensar, e dali deriva a dor da confusão.


Quando o ódio se manifesta como uma crítica depreciativa, posso observar como a crueldade tenta se passar por pensamento crítico. Podemos descrevê-lo como uma usurpação invejosa e onisciente do pensamento, que inibe o pensar como objeto bom produtor de crescimento.

Tal movimento pode ser visualizado pela inveja que funciona como inibidora desse objeto bom, dificultando realizações na vida externa e as restaurações necessárias ao crescimento da vida emocional.


Um exemplo macroscópico do ódio, funcionando como inveja maligna, pode ser encontrado no nazismo. A inevitável associação do nacional-socialismo com o autoritarismo e a megalomania, criaram um regime totalitarista, em que seu líder, movido por ódio mortal, operava com flagrante distorção e manipulação de conceitos sobre o ser humano. Longe de saber o que é um ser humano, o ódio presente nos seus discursos, colocava cuspe em seus lábios trêmulos, deixando entrever a mistura do prazer alucinatório da euforia e a grandiosidade que derrota e despreza os inimigos. A derrota de suas premissas não lhe era admissível, deste modo, como a monstruosa Esfinge no mito de Édipo, ele se mata quando ruiu o que construíra para ser eterno. Não ocorre de forma diferente com outros líderes totalitários. Eles sempre discursam da mesma forma.


O que a Esfinge coloca, como imagem, é a relação que um sujeito mantém com seu inconsciente. A primeira hipótese é que podemos ser totalmente “devorados” pelo inconsciente. Mas temos a opção de estabelecer outra relação com ele. Isto não significa que o eliminamos, que temos respostas certeiras que farão a Esfinge se suicidar, mas podemos perceber o perigo que se encontra no inconsciente, uma vez que a Esfinge que se mata retorna para Édipo através de Jocasta, produzindo um casamento sem amor, por obrigação e dever, e não por desejo. Posso escolher não fazer isso e ter autonomia. Mas antes é necessário conhecer a si mesmo, libertar a imaginação.


O que a análise permite do conhecer a si mesmo vem através de outra voz, do buscar outra resposta, que transcende o drama edípico do ódio, e se instala na tragédia amorosa dos vínculos de criação onde outro saber emerge: o saber sobre si mesmo.


O saber trágico é limitado porque está preso a imagens. Essas são expressões de intuições originais a respeito de uma “perfeição de verdade” que a poesia, os mitos, a rate, a religião e a ciência tentam dar conta, mas, cada uma a sua maneira, denunciando uma incompletude. Essas intuições dão à verdade uma presença específica, uma tentativa de compreender algo inacessível.


Em outras palavras, não existe um ser humano que tenha, digamos, um inconsciente isento de todos os elementos que o mito de Édipo descreve. Mas através da psicanálise alguém pode se tornar capaz de impedir que esse inconsciente passe ao ato. Trata-se de adquirir uma subjetividade reflexiva e deliberativa, uma autonomia social, um estado que nunca para de se desenvolver, sob pena de morte psíquica.


No pós-guerra imediato, os vencedores se encontraram numa espécie de beco sem saída diante de um país moral e eticamente arruinado pelo ódio promovido pelo nacional-socialismo, levado ao poder político antes da guerra, diga-se, por eleições democráticas.


A Alemanha havia sido dominada por políticas que culminaram em ações deliberadamente genocidas, até então somente vistas na História durante a Inquisição. Os direitos humanos simplesmente passaram a inexistir por decretos triviais, chancelados por juízes. Pode-se então notar como esses direitos são mínimos, e não são suficientes para deter a crueldade e o ódio de indivíduos.


Foi então sugerido um processo de “desnazificação”. Uma estratégia para lidar com o ódio arraigado nos corações e mentes de uma Nação que havia abolido os direitos humanos. Esse processo deveria levar em conta uma das mais fundamentais descobertas da psicanálise, que são os estados mentais arcaicos, muito primitivos, detectáveis nas pessoas mais civilizadas e cultas, e que podem se proliferar tanto de forma benéfica, mas podem se proliferar também de uma forma cancerosa.


O processo foi conduzido pelo filósofo e psicanalista, Roger Money-Kyrle, que servira durante a guerra no MI-5. Tratava-se de escolher na nova realidade do pós-guerra pessoas que pudessem ocupar cargos públicos de forma desintoxicada do ódio nazista.


Como toda população esteve comprometida com o nazismo, era muito difícil encontrar um não-nazista puro, pois os cidadãos da Alemanha quando não haviam aderido entusiasticamente ao nazismo, de algum modo foram todos conformes ao regime. Como saber que os postulantes não estavam apenas mentindo sobre seu passado recente pleno de ódio e crueldade?


O grupo de trabalho liderado pelo psicanalista, criou então um teste para diferenciar personalidades autoritárias das não-autoritárias. A ideia era que o autoritarismo, por impedir o pensar, consistia em uma das principais fontes geradoras do nazismo. Tentava-se assim, atacar a fonte.


O teste consistia em reunir numa sala de projeção postulantes a um determinado cargo, onde eram exibidos filmes das atrocidades dos campos de concentração. As reações observadas foram de três tipos. Havia os que assistiam impassíveis, sem quaisquer sinais de emoções; havia os que se retiravam “protestando”, alegando ser aquilo uma mentira; e havia os que choravam e se sentiam mal com o “revelado”. Deste último grupo foram escolhidos os postulantes.


Na concepção do autor do teste, eles eram capazes de atingir uma posição depressiva, conceito de Melanie Klein, de quem era discípulo. A ousadia era grande, transformava-se um conceito psíquico em algo de aplicação política em larga escala. Havia um reducionismo equivocado que rompia com as relações entre ontologia e epistemologia?


Certamente, que no plano individual, podemos traduzir um aspecto do conceito de posição depressiva por uma passagem de Tomás de Aquino quando ele diz que nenhum ser é tão finito que não possua nada de infinito. Ou seja, devemos dar um crédito humanista supondo que existem incontáveis pessoas que podem enxergar seus erros e que tentam abrir-se para uma reparação, ao perceber o envolvimento com estados mentais que produzem estreiteza mental.


Entretanto, como a estreiteza mental é indissociável da crueldade, como explicar que indivíduos que certamente não tinham estreiteza mental, como Martin Heidegger, aderiram ao nazismo, não como ideologia, mas com um estado mental conforme? O que dizer de Werner Heisenberg, o físico brilhante, autor do Princípio da Incerteza, interlocutor de Einstein e Niels Bohr, que continuou trabalhando para o regime nazista? E Carl Jung que aceitou ser presidente da Sociedade de Psicoterapia do III Reich?


O problema deste tipo de teste se assemelha a uma rede de pescadores, cujos buracos tem certo diâmetro, e assim nunca podemos pescar peixes senão os que são maiores que estes diâmetros. Os peixes pequenos vão escapar da rede. Será que podemos dizer que, pelo fato de termos esta rede e que pescamos esses peixes, isto significa que no mar há apenas peixes deste tamanho pescado?


Pela primeira vez na História, essas situações foram levadas à um julgamento, o famoso julgamento de Nuremberg, onde se estabeleceu o conceito de eticamente intolerável. Tal conceito colocava as claras que do ponto de vista do humano existem atos que não podem ser reparados ou perdoados. Isto é, existem no mar peixes que tem o diâmetro maior que nossa rede e que isso não depende da nossa rede. Esses peixes tornam a rede obsoleta. Isso é válido para todos os argumentos que foram utilizados. A complexidade torna-se a única saída para pensar se quisermos ter um futuro.


O escritor Primo Levi fala disso no livro A trégua[1]. Ele descreve que após ser liberado do campo de concentração de Auschwitz, voltando para sua casa em Turim, seu trem parou na estação de Frankfurt. Ele desce e vê um ex-soldado nazista, reconhecido pelo uniforme descaracterizado (eram chamados de fantasmas), trabalhando nos trilhos. Ao olhar para o escritor que o observava, o soldado diante da visão do número de prisioneiro tatuado em seu braço, chorando se ajoelha e faz um sinal com as mãos constritas, como se tivesse pedindo perdão. Aí a “desnazificação” foi espontânea pela simples revelação da inegável crueldade que sobrepujara o humano, pelas provas inegáveis do Mal fornecidas a uma testemunha. Entretanto, essa espontaneidade de um indivíduo não eliminava o que havia sido feito. O que restava para a vítima era continuar vivendo e tentar se expressar como testemunha da barbárie.


No fundo, tratava-se de reconhecer que a desfiguração causada pelo ódio veiculado pelo nazismo não foi um acaso, nem se tratou de um processo que poderia ter sido sustado. Foi um processo histórico, onde a violência do ódio levou ao esquecimento do Ser e da Verdade, ou seja, foi a negação autoritária das diferenças e o brutal equívoco de esquecer que o pensamento constitui o mais alto legado que nos pode oferecer a vida.


Em outras palavras, não devemos esquecer de socraticamente admitir o nosso não-saber, sob pena de nos tornarmos mais nazistas do que os próprios. Se há que continuar preservando os direitos humanos esse deve continuar como um trabalho incessante de denúncia e alerta, pois mesmos os mais sábios dos homens podem exibir aspectos de ignorância associados com aspectos arcaicos da mente que se manifestam de forma paranoide, ou que necessitam de colocar o Mal em alguém que lhes é diferente.


Em continuidade, adotarei o modelo da guerra, enfatizando mais uma vez que não reivindico para o modelo nenhum status de narrativa histórica, sociológica ou antropológica. Trata-se de usar imagens e mitos para pensar, fazer um confronto entre conjecturas imaginativas e conjecturas racionais, que possam ser úteis para uma descrição clínica.


A guerra é um confronto derivado de interesses em disputa por dois ou mais grupos distintos de indivíduos, historicamente organizados, utilizando-se de armas para aniquilar fisicamente o inimigo. Sem ódio (H) e sem hipocrisia (-H) a guerra não ocorre, sobretudo, quando os indivíduos se veem restritos a lidar com seu ódio apenas através da hipocrisia. Na maioria das vezes, a hipocrisia significa o uso de uma premissa falsa regendo uma lógica moral. Agrego o cinismo vulgar tão ao gosto de certos indivíduos que apenas se locupletam quando estão em cargos institucionais. A hipocrisia e o cinismo são instrumentos da diplomacia e da política.


Uso o modelo da situação de guerra para dialogar sobre diversas situações clínicas onde as pessoas travam “guerras” particulares consigo mesmas ou com outros, guerras morais, com intuito de provar a superioridade de uns em detrimento da inferioridade de outros. Nessas batalhas, elementos de risco de não sobrevivência e risco de aniquilamento iminente estão presentes. São elementos que se relacionam com a parte psicótica da personalidade (Bion, 1956).


A personalidade psicótica deriva de uma intolerância acentuada à frustação, que gera dor psíquica; a dor gera ódio que ataca o aparelho de ligação entre a realidade interna e a externa, isto é, a capacidade para pensar, produzindo um estado mental onde existe uma impossibilidade de diferenciar a realidade interna da externa. O ódio ataca também os vínculos amorosos os transformando em sadismo.


Essa indiferenciação de realidades, por sua vez, causa um sentimento de intensa vulnerabilidade, que se exterioriza por um medo profundo_ o medo de aniquilamento iminente _ um medo sem representação, o terror sem nome.


A defesa para esse ódio é uma espécie de falência da sensibilidade, onde o indivíduo é capaz de sentir a dor, mas não de sofrê-la, deste modo, perde a capacidade para sofrer prazer nas relações (Bion, 1970). Sem dor com significado e sem prazer com significado, ou seja, sem sensibilidade ética e estética, o indivíduo deixa de se importar com o humano, não diferencia o que é animado do inanimado, e as relações se tornam líquidas, precipitadas, porém evaporando facilmente sem deixar rastro.


it this paper.at the beginning.O indivíduo que vai à guerra necessita voltar para a vida em sociedade após as escaramuças e batalhas. Para conseguir isso ele necessita lidar com uma significativa e impressionante cesura que ocorre no seu dia a dia da guerra. Seu psiquismo deve estar apto para digerir (função alfa) as experiências recheadas de terrores primitivos, ou seja, necessita ter um continente psíquico no qual confie saudavelmente para poder entregar o exercício dessa tarefa.


Em outras palavras, soldados que vão à guerra lidam o tempo todo com a morte e o ódio. Eles são treinados para tirar a vida de outros seres humanos. Este é normalmente o papel que se atribui aos Deuses. Pedir aos soldados jovens que exerçam este papel “divino”, leva a consequências gravíssimas, pois sempre ocorre um momento em que eles precisam cruzar a cesura entre o mundo onde atuam como deuses para o mundo onde tem que voltar a agir num papel societário comum. Passam da onipotência do guerreiro para o desamparo do cidadão de uma sociedade que os mandou para morrer, e se morrem, não foi por causa da sociedade, que em tese os deveria proteger, mas por causa da incompetência em não terem sido deuses. A sociedade os torna um continente suspeito e não confiável; o que gera ódio à sociedade. Podemos situar o relato naquele trecho do mito de Édipo onde há o confronto de gerações, a encruzilhada de Daulios e Delfos.


Matar alguém constitui um ato que está fora do escopo humano. Todavia, está presente em homicidas criminosos e alguns notórios políticos. Não vejo diferença entre um serial killer, um político que rouba recursos para a saúde, e os juízes que emitem habeas corpus para essas pessoas.


Matar é algo que os soldados fazem pela sociedade e para tal se expõem também a serem mortos. São colocados para se sacrificar de algum modo. Mas quando voltam para casa entram em contato com o splitting profundo que ocorreu em suas mentes, pois voltam para um meio onde isso não é admissível. Eles carregam esse peso pela vida a fora, lutando para integrar as experiências de ter matado alguém, tentando juntar as partes de sua personalidade que estavam dissociadas quando mataram seres humanos. A maioria dos soldados fica entregue à própria sorte para fazer isso. Eles não têm na volta os instrumentos apropriados, e por isso todos os tipos de conflito de sua história passada emergem. Não é diferente no que ocorre com crianças abusadas, nos atos de estupro, no abandono de menores.


A guerra como vínculo de ódio (H) e vínculo de hipocrisia (-H) é a antítese da mais fundamental regra ética que aprendemos – não faça aos outros aquilo que não quer que se faça a ti. Quando são convocados para a guerra, os soldados são chamados a violar códigos de comportamento civilizado. Para sobreviver psiquicamente na área do deus Marte é necessário dar um jeito de deixar de lado as regras convencionais da conduta moral. Isto exige suspender a culpa em matar e mutilar pessoas. Exige ser cruel. Reconciliar a conduta moral que nos ensinam desde crianças, com ações brutais de guerra, tem sido um problema para os soldados de boa índole desde os primórdios da humanidade (Marlantes, 2011).


Bion, ao participar da I Guerra Mundial, e enfrentar batalhas cruentas por quatro anos, referiu-se a esta experiência dolorosa citando o Mahabharata, a epopeia Hindu. Uma experiência sobre a qual levou muitos anos para falar. Em sua obra temos em diversos trechos a aplicação da metáfora da guerra (1979 e 1997 b).


Na epopeia Hindu, temos no seu núcleo o Baghavad Gita, o confronto entre Arjuna, o guerreiro, e Krishna, o Deus encarnado na forma humana, como o condutor da carruagem de Arjuna. Note-se que quando nos referimos a um indivíduo muito cruel e violento costumamos dizer que ele só tem a forma humana, como se tivesse disfarçado de ser humano. Na mitologia muitos deuses fazem isso para se relacionar com os humanos. Os resultados desses encontros são na maioria das vezes odes à crueldade.


Arjuna é levado por Krishna até as hostes inimigas. A batalha é iminente. No lado dos inimigos ele vê muitos de seus parentes e amigos. Ninguém deseja lutar contra amigos e parentes. Ele lança o olhar no campo de batalha. Percebe os heróis prontos para a luta e vê que todos são pessoas queridas. Eles são avós, professores, tios, irmãos, filhos, amigos próximos, camaradas. Ele é tomado de compaixão por todos eles. Sua voz soa com profunda tristeza ao dizer: “Krishna, eu sinto uma fraqueza terrível tomando o meu ser... minha cabeça está rodando e acho que vou desmaiar... Vejo todos esses companheiros e sinto que não posso lutar com eles... pelo prazer passageiro deste mundo por que devo eu matar os filhos de Dhritarashtra? Eles têm sido vorazes, maus, avarentos e gananciosos. Tenho certeza que sim. Mas eles continuam sendo meus parentes e é um pecado matar os parentes. Prefiro desistir da Guerra. Seria até melhor ser morto por Duryodhana. Eu não vou guerrear”. Arjuna afunda-se no banco de sua carruagem e atira fora seu arco e suas flechas sendo tomado pelo luto.


Krishna após várias argumentações para tentar convencê-lo a lutar, finalmente diz a Arjuna que existem dois caminhos de realização, o caminho do conhecimento pela meditação e o caminho dos homens pela ação. Os mesmos caminhos são retratados na mitologia Ocidental, como por exemplo, na história do Rei Parsifal, na lenda do Santo Graal, onde temos o irmão pescador do Rei que representa o caminho do conhecimento. Ele é um monge que Parsifal encontra antes de entrar no castelo do Graal. Parsifal nos mostra a escolha que faz do caminho da ação, o mesmo caminho pregado por Krishna para Arjuna.


A conversa entre Édipo e Tirésias é da mesma natureza, bem como a conversa entre Édipo e a Esfinge, entre Édipo e Laio na encruzilhada, entre Édipo e o Oráculo de Delfos. O caminho da ação proposta pelos personagens vai em direção oposta de um olhar amoroso, e reforça a falta de consideração pessoal que os personagens, Laio, Oráculo, Tirésias e a Esfinge, têm para consigo mesmos e para com a verdade. Bion nos falou da arrogância destes personagens, e em Cogitações (p.136) fala da falta de compaixão e do amor. A arrogância se traduz pela escolha dos personagens em falar meias-verdades, que no fundo significa falar boas mentiras. (Chuster, 2014 a)


Krishna diz a Arjuna: “Lembre-se que nenhum homem pode ficar quieto, nem mesmo por um minuto. Um homem tem que fazer seu trabalho. E uma lei da natureza que o homem deve trabalhar.... Se você não trabalha não pode viver. Até as funções fisiológicas necessitam de trabalhar para se manter.... Então como podemos escapar dos laços do trabalho? Fazendo algo de sacrifício pelo Bem geral. Este é o segredo do trabalho bem feito. O trabalho deve ser feito para que outros possam se beneficiar e não você. Dedique todo o trabalho a mim, e lute”.


Assim, a fala de Krishna tenta convencer os guerreiros a lidar com a culpa, para tal não devem pensar nunca que estão cometendo um grande equívoco. Precisam acreditar que a razão pela qual estão lutando deve empregar diversas meias-verdades (ou boas mentiras). Isso não é diferente do que fazem os partidos extremistas, bem como os religiosos fundamentalistas.


Voltarei agora às situações clínicas, já mencionadas, nas quais as pessoas estão em guerra com os outros e consigo mesmas. Durante este estado mental podem usar meias verdades e mentiras para se convencer da correção moral de suas ações.


Em primeiro lugar, como mostrou Bion (1979, 1997), podemos tentar lidar com o problema considerando o quão estranho é o pensamento. Podemos obter uma pista imaginando em qual estado mental ou em quais condições este pensamento surgiu e se misturou com nossa forma de pensar. Pode ser que tenha ocorrido quando estávamos dormindo.


Mais ainda, podemos usar um tipo de modelo imaginativo para desenvolver mais hipóteses de trabalho sobre as situações que emergem destes estados. Em resumo, respeitamos a complexidade do funcionamento mental (Chuster, 2014 a e b) permitindo o trabalho da imaginação.


Sugiro que podemos usar como modelo para a situação de guerra Humano versus Onipotência, o trecho da Eneida citado por Bion (1977): A morte de Palinurus.


Imaginemos a situação na qual Palinurus se encontra com o Deus Somnus (em latim Hypnos) e travam um diálogo.


O Deus disfarçado de humano, Phorbas, fala mansamente: “Palinurus, filho de Iasus, os mares por si só podem conduzir a frota, pois os ventos sopram calmamente, esta hora é garantida para o descanso. Repouse sua cabeça e tire seus olhos atentos do trabalho. Por algum tempo, eu ficarei de serviço para ti”.


Palinurus, mal erguendo seu olhar, fala de forma rude e contestadora: “Você me diz para acreditar na face plácida do mar, nas ondas calmas? Devo eu colocar minha fé neste monstro? Por que devo trair Enéas com a brisa decepcionante, sobretudo eu que fui tantas vezes decepcionado pelo céu claro? ”.


Palinurus amarra-se ao timão e mantém seu olhar fixo nas estrelas. Mas apesar de toda a cautela, o Deus balança seu ramo molhado com as gotas do rio Lethes, soporíficas com o poder de Styx[2], e as joga nas pálpebras do timoneiro, que cai adormecido e desamparado. Em seguida o atira ao mar, quebrando o timão e parte da proa. Palinurus acorda se afogando nas águas e tenta chamar em vão seus companheiros, enquanto isso o Deus se revela, ergue suas asas, e voa.


Pouco tempo depois Enéas acorda e se dá conta que seu navio estava à deriva, seu timoneiro sumido no mar. Ele toma o timão nas mãos suspirando profundamente e seu coração dói por causa do destino do amigo: “Oh, Palinurus, por que acreditastes tanto no mar e no ar calmo, agora repousas nu e morto, em lugar desconhecido, nas areias brancas do fundo do Mediterrâneo”.


A breve troca de palavras entre Somnus e Palinurus é cuidadosamente composta por Virgílio. O Latim é deslumbrante e musical. Cada uma das falas tem quatro linhas, mas seu tom é profundo e intensamente poético. Somnus começa de forma delicada, como numa canção, chamando Palinurus pelo nome e pelo patronímico, como prova de respeito. Em seguida reforça sua mensagem com efeitos sonoros e rítmicos: aequera… aequaetate... Aurae… hora quieti... O mar está calmo. Não há brisas.


A primeira fala ordena Palinurus a tirar seus olhos cansados do timão e o Deus se oferece para tomar o seu lugar. Palinurus responde num tom bem diferente com três questões retóricas e indignadas. Sua indignação provém do pensamento de que poderia ser negligente no dever delegado por seu capitão Enéas. A devoção ao seu cargo é que permitiria Enéas de prosseguir em sua tarefa sagrada. Mas não pede ajuda, mesmo percebendo a “pressão”.


Num determinando vértice, Palinurus é a vítima sacrificial, o bode expiatório: “a vítima (o cordeiro) que irá salvar muitos”, e que constitui a mais terrível fantasia entre todas, como mostrou Leclaire (1975) no ensaio Mata-se uma Criança[3]. Para ele a prática psicanalítica consiste em tornar manifesto o trabalho constante da pulsão de morte: que consiste em matar a criança maravilhosa (ou aterrorizante) que de geração em geração, testemunha acerca dos sonhos e desejos dos pais; só há vida a esse preço, pela morte da imagem primeira, estranha, na qual se inscreve o nascimento de cada um. Morte irrealizável, mas necessária, pois não há vida possível, vida de desejo, de criação, se cessarmos de matar a criança maravilhosa (a representação narcísica primária) que renasce sempre.


Palinurus é a “criança” sacrificada para que a jornada de Enéas possa prosseguir e ter êxito. Num sentido sutil existe aqui uma mensagem da civilização grega para os romanos: nós somos melhores do que vocês. Foi nosso trabalho e sacrifício que permitiu que vocês romanos fossem aquilo que são. Tudo que vocês possuem devem a nós: a nossa bem-sucedida civilização.


Note-se na mensagem a que alguém é melhor e alguém é pior. A lógica nega a diferença, para que volte a existir de forma moral. O inferior é condenado.


Este vértice de rivalidade pode ser colocado no plano individual e faz parte do domínio que Bion (1965) chama de transformação em alucinose. A teoria das transformações tem a vantagem de mostrar um modelo espectral em que se pode trabalhar simultaneamente uma série de elementos como a rivalidade, a crueldade do superego, o sofrimento na tarefa, as mentiras, o sentimento de superioridade versus o sentimento de inferioridade, a lógica moral e as falsas premissas que geram ciclos de argumentos defensivos onde onipotência e desamparo podem ser confrontados. A hipótese de um conteúdo esmagado pelo impulso moral e com grande perda de sintonia com o continente é outra perspectiva que pode ser mencionada. O espaço de dissintonia entre continente e conteúdo é preenchido por mentiras.


A morte de Palinurus como equivalente à morte sacrificial da criança, movida pelo ódio ao crescimento, ou ao que pode crescer e ser bom, é uma fonte de terrores profundos.


Por outro lado, o trecho da Eneida pode gerar diversas questões:


Somnus, a onipotência, foi narcisisticamente ferido pela contestação de Palinurus. Seu ódio se espalha e indaga: Quem é este arrogante humano que desafia um Deus com uma lógica diferente? Não é isso que faz o fundamentalismo? Ter fúria contra quem pensa?


Um analista que está “amarrado” a uma teoria pode ser uma representação do Palinurus desamparado. Pode fazer intervenções da natureza de uma transformação em alucinose (Bion, 1965); o que simbolicamente pode representar o ódio que simbolicamente mata o analisando através de uma não escuta.


Drogado pelo Deus do sono, Palinurus é atirado ao mar com fúria e ruído. Enéas, o capitão da frota, acorda e coloca em si mesmo o capacete de timoneiro assumindo a tarefa. Inconsciente da influência do Deus Somnus, ele acusa Palinurus de complacência e negligencia. O mesmo pode ocorrer com o analista que usa memória, desejo e necessidade de compreensão. O quão drogados podemos ficar com esses elementos quando são expressões de diversos tipos de ódio?


REFERÊNCIAS


Bion, W.R. (1956) Differentiation of the psychotic and non-psychotic personalities in: Second Thoughts (pp 43-64) London: Heinemann, 1967


__________ (1957) On Arrogance. In: Second Thoughts. Northvale: Jason Aronson Inc., 1967.


-------------- (1962a) A Theory of Thinking. In: Second Thoughts. Northvale: Jason Aronson Inc., 1967.


---------------- (1962b) O Aprender da Experiência. Zahar, Rio de Janeiro.


------------- (1963) Elements of Psychoanalysis, Heinemann, London.


_________ (1965) Transformations, Heinemann, London.


-------------- (1966) Catastrophic Change, Bull.Brit.Psychoanal.Soc. Nº5


___________ (1970) Atenção e Interpretação, Imago, Rio de janeiro.


------------- (1977) Two Papers: The Grid and Caesura, Imago, Rio de Janeiro.


_________ (1997) Taming Wild Thoughts, edited by Francesca Bion, Karnac, London.


Chuster, A. (2014) A Lonesome Road: essays on the complexity of W.R.Bion’s work, Trio Studios, Rio de Janeiro.


__________ (2017) Simetria e Objeto Psicanalítico; desafiando paradigmas com W.R.Bion. Trio Studio, Rio de Janeiro


____________ (2018) Capacidade Negativa; um caminho em busca da luz. Zagodoni editora, São Paulo


____________ (2020) Psychoanalytical Intuition in dream and waking life, trabalho apresentado no Congresso Internacional sobre a obra de Bion, Barcelona, Espanha, fevereiro de 2020.


_____________ (2021) O enigma de Ulysses em Homero e James Joyce, Revista Ide, volume 43, junho, 2021.


Marlantes, K. (2011) What is like to go to war, Grove Press, New York



NOTAS

[1] Levi, P., A Trégua, Companhia de Bolso, 2010.

[2] Styx personifica na mitologia o ódio, a fronteira entre o céu e o inferno. Regia no centro do submundo, o inferns, as regiões inferiores, um grande pântano como um local triste e sombrio para onde convergiam os demais rios; dentre eles o rio Lethes, do esquecimento, o Aqueronte, o rio do infortúnio, o Cócito o rio das lamentações, o Flegelonte onde eram imersos os violentos e o rio Estige para onde eram levados os coléricos e mal-humorados, afim de que se afogassem e brigassem eternamente.

[3] A representação usada por Leclaire é muito útil para situar de forma mítico-onírica, a modo de uma construção psicanalítica, que as pulsões nunca aparecem de forma pura, mas estão misturadas ou fusionadas em graus variados. Muito mais sentido faz nesse ponto a analogia com o trabalho de Freud Uma Criança é espancada (1924) se considerarmos a questão do masoquismo moral descrito por ele da seguinte forma: Assim o masoquismo moral se torna uma peça clássica da indicação da fusão pulsional: seu perigo reside em sua origem na pulsão de morte e representa parte desta que escapou da deflexão sobre o mundo externo sob a forma de uma pulsão de destruição.

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