A Grade é uma das muitas expressões dos desenvolvimentos trazidos pela obra de Bion, que representa a mudança de paradigma que o autor nos propõe. Essa mudança de paradigma se utiliza de expressões-limite que tem a imensa virtude de chamar atenção para a especificidade da linguagem psicanalítica, mas que não a constituem por inteiro, pelo contrário, a descontroem forçando pensar novamente sobre o que se pretende comunicar.
As expressões-limite vêm qualificar, modificar, e retificar a linguagem analógica comumente usada em psicanálise, nos lançando no mundo da abstração máxima.
A Grade é uma dessas expressões, bem como o são os elementos da psicanálise que a compõem, como, por exemplo, os elementos alfa e beta, e as funções que estão implícitas nesses dois elementos, como a função alfa, a tela beta, etc.
No fundo existe uma influência subliminar de Kant na confecção da Grade. Podemos entender isso da seguinte maneira: descrições teóricas não se estabelecem no nível do conceito, mas no do esquema. Kant entendeu os conceitos como métodos para fornecer imagem à palavra, até que a Ideia supere não apenas a imagem, mas o conceito, ao solicitar que se “pense mais”.
A Grade visa nada mais do que estimular e refletir esse “pensar mais” sobre o que acontece na prática analítica. Por essa razão é um instrumento destinado a ser usado após as sessões.
Outra importante razão para se desenvolver algo como a Grade é o fato do trabalho do analista ser um trabalho solitário. Em geral, não tem com quem compartilhar suas muitas e variadas experiências ao longo do seu dia de trabalho. Por esse motivo conta apenas consigo mesmo para revisar e reavaliar seu trabalho nas sessões. Assim, a Grade é um instrumento através do qual o analista pode se auto supervisionar após as sessões. Algumas vezes mais rapidamente do que outras, mas sempre no interesse de pensar o seu trabalho e tentar desenvolvê-lo mais adequadamente.
A Grade de Bion não é a única possível. Acredito que cada analista deve ter a sua, de algum modo, através da qual articula e descreve situações clínicas sobre as quais deseja refletir. Pode ser, por exemplo, a anotação de um sonho, de uma interpretação com a qual se surpreendeu, e que pode ficar guardada para um futuro trabalho.
Ao longo da minha trajetória de estudar e discutir a obra de Bion a Grade tem me chamado particular atenção, e sobre ela fiz diversas construções complementares, como a Grade Edípica, a Grade Negativa (construída juntamente com Júlio Conte), a Grade dos Sete honestos Servidores.
Além dessas construções procurei me aprofundar nas influências vindas da matemática pura, e fiz um estudo ampliado da Grade Avançada que aparece no capítulo introdutório de Atenção e Interpretação (1970, pg.05). Por essa razão, antes de desenvolver a Grade das emoções, vou retomar aqui o estudo sobre a Grade Avançada, pois o entendimento desta é essencial para o entendimento da Grade das emoções.
Vou indagar o objetivo da Grade da seguinte forma: Quais são as questões que o analista pode se fazer e responder para si mesmo após as sessões? E em que a Grade Avançada se diferencia da primeira?
A diferença da Grade Avançada para a primeira está no fato de que ela contempla, ainda que de forma condensada, as ideias sobre a Cesura que Bion irá apresentar em 1975.
A Cesura pode ser definida como uma entidade imaginária infinitamente plástica, que ao mesmo tempo separa e conecta dois meios distintos. O processo de sua observação não pode ser feito sem a percepção das transformações que ocorrem nesta conexão e sem_ obviamente_ a introdução de elementos simbólicos que fornecem a interpretação do tipo de fenômeno que ocorre. O elemento simbólico utilizado provém da capacidade imaginativa do analista, e essa é o veículo da capacidade intuitiva.
A Grade Aperfeiçoada permite que o analista possa tentar verificar, de forma mais específica, se suas interpretações estabeleceram uma simetria entre meios distintos. Por exemplo, entre onipotência e desamparo, amor e indiferença, ódio e hipocrisia, conhecimento e onisciência, concepções e conceitos, elementos alfa e elementos beta, etc. Esse processo também implica numa avaliação da criatividade alcançada no trabalho analítico, que pode ser obstruída e/ou atacada por elementos da parte psicótica da personalidade (Bion, 1956).
Ao abordarmos o conceito de Cesura penso que não devemos esquecer que um dos significados do termo cesura é de pausa rítmica no interior de um verso. Portanto, trata-se de um termo que pode ser tanto da poética quanto da localização obstétrica presente na citação original de Freud (1926): Há muito mais continuidade entre a vida intrauterina e a primeira infância do que a impressionante cesura do nascimento nos permite imaginar.
Essa frase era um recado para Otto Rank sobre a origem de todos os conflitos no trauma do nascimento. Antes do nascimento existe um esboço de estado mental cujos vestígios aparecem na vida pós-natal e podem fornecer elementos conflitivos.
Penso que Bion resgata o conceito de Cesura de uma forma ampla e introduz sua conexão com a poética e, desta forma, afirma a busca de uma linguagem de longo alcance (Language of Achievement) para qualquer situação onde existe um vínculo a ser investigado e simetrias a ser interpretadas. Essa investigação privilegia a singularidade e a criatividade do analista.
Em trabalho recente sugeri que o termo transferência (Chuster, 2014, 2017, 2018a, 2018b, 2018c) pode ser substituído com uma série de vantagens pelo termo cesura. A frase final do artigo Cesura de Bion (1975) sintetiza a ideia por mim desenvolvida: Investigue-se não a transferência, não a contratransferência, mas a (contra-trans) -ferência, o vínculo, a sinapse, a cesura, o humor transitivo-intransitivo.
O formato da Grade aperfeiçoada não foi delineado por Bion, tal como o fez quando construiu a sua primeira Grade, cujo formato lembra para muitos o de uma tabela periódica ou de um sítio arqueológico (Chuster,2011, 2014, 2017, 2018a). Mas a intenção não era lembrar modelos lineares, pois o pensamento implícito é um pensamento não-linear, mais propício de ser representado por um holograma.
Sendo assim, minha tarefa é tentar imaginar um modelo gráfico para a Grade Aperfeiçoada, e depois, para a Grade emocional, que possa dar ideia do modelo não linear, holográfico, tridimensional.
Vou utilizar nesse ponto os conceitos de construção de um modelo gráfico espectral [1], para reafirmar minhas sugestões de trabalhar com o paradigma de um sistema aberto, regido pelo Princípio de Incerteza e, com a Infinitude de possibilidades que são características destes sistemas. Em diversos trabalhos tenho enfatizado essa mudança de paradigma na obra de Bion (Chuster, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2018a, 2018b, 2018c).
O elemento finito será considerado quando ocorre expressão da experiência através da linguagem (ou dos elementos simbólicos). Ou seja, sempre que a experiência é colocada em palavras, por um lado ela adquire uma dimensão finita, e de outro lado, mantém a Infinitude do seu potencial para novas aberturas.
O eixo vertical desse modelo representa a Cesura que percorre do elemento T da psicanálise (Transformação) ao elemento “O”, que representa a experiência emocional (a coisa em si).
A experiência é resultado da existência de um campo formado pelo período: Tα--------------Tβ (Sendo Tα o ponto onde a transformação começa e Tβ o ponto onde a transformação termina) e pelos resultados no vínculo Ta ----------------- Tb (sendo Ta a transformação analítica e Tb a transformação do analisando).
Os elementos que fazem conexões simbólicas, como já foi dito, indicam a existência da Cesura. Obviamente, que várias conexões podem ser feitas, com diferentes qualidades: mais intensas, mais intimas, mais superficiais, precipitadas, saturadas. Entretanto, o analista deve ter em mente que os pontos que dão início a transformação (fato selecionado) são arbitrários, e provém do “acaso” da individualidade da escolha, onde entra o inconsciente do analista e suas teorias sobre o inconsciente.
Vou mencionar neste momento uma frase atribuída a James Watson, o cientista que revelou a estrutura do DNA: “ o acaso favorece a mente preparada”. Aplicando-a ao analista devemos buscar os requisitos que o preparam para sua tarefa. Além de sua análise pessoal_ onde se espera tenha desenvolvido e treinado sua intuição para ter contato com a realidade psíquica_ Bion sugeriu que o “treino” do analista deve estar eternamente pautado pela busca de um estado mental sem memória, sem desejo e sem necessidade de compreensão. Este estado também está presente em diversas atividades artísticas dentre elas, a pintura e a poesia. Em resumo, trata-se de uma sugestão para o analista calibrar o seu instrumento mental de trabalho.
Exemplos dessa aferição: Picasso costumava dizer: eu não procuro, eu acho [2]. O poeta Keats sugeriu que usar capacidade negativa tornava seu calibrador capaz de encontrar uma linguagem de Êxito.
A Linguagem de Êxito talvez possamos dar um exemplo usando outra frase de Picasso: “ Há pessoas que transformam o sol numa mancha amarela, mas há aquelas que transformam uma mancha amarela no próprio sol” [3].
Escutei certa vez que numa exposição de arte, diante de um quadro que estava pintado apenas uma mancha preta pequena e uma mancha preta grande, alguém perguntou a Oscar Niemeyer se ele achava aquilo de fato uma arte. Ele respondeu que sim, pois o quadro fazia ele saber o que era se sentir como um sapo. Ele comentou que o sapo só tem essas duas percepções na vida e reage diante delas; a mancha pequena é comida, a grande um predador. Entre uma mancha e outra nada acontece na vida do sapo.
Certamente que não se exige de o analista tornar-se um poeta ou artista, mas ele deve empregar o que conhece de psicanálise como Linguagem de Êxito para fazer as conexões entre os distintos meios com que se depara. Assim como o poeta e o artista, o analista precisa calibrar seu instrumento de trabalho.
Bion (1965, 1967, 1970) chama a atenção de que o analista pode fazer isso se estiver trabalhando atento para o fato de que a linguagem foi elaborada tanto para buscar a Verdade, como para engano e evasão. Isso cria um espectro que pode ser representado da seguinte forma:
- ------------------ Memória----------------------------------------- +
- -------------------Desejo-------------------------------------------- +
- ------------------ Necessidade de compreensão---------- +
Busca da Verdade ⟸---------------------------------⟹Engano e Evasão
A pergunta imediata: o que decide por um sentido ou pelo sentido contrário quando se utiliza a linguagem interpretativa?
A decisão para o engano e a evasão (uso de memória e desejo) ocorre de forma mais intensa quando o campo é o da Transformação em Alucinose (1965), onde predomina a rivalidade e a crueldade do superego na composição de uma lógica moral. Uma lógica moral costuma conferir onipotência ao seu operador que fica inclinado a não abrir mão deste estado mental. Todavia, essa lógica tem uma premissa falsa, uma vez que foi produzida por um ciclo de transformações projetivas. A evolução da premissa falsa ganha corpo com a criação de mentiras (Bion, 1970). Estas, por sua vez, sustentam a Alucinose. Podemos então inserir a alternativa discutir a premissa, o ponto onde nasce a lógica e não a lógica em si. Ou seja, discutir o que provoca a criação e por isso como se cria e não julgar a criatura.
Nos grupos, a transformação em Alucinose pode aparecer em movimentos de luta e fuga, com hostilidades típicas desta transformação. Nos grupos de psicanalistas a frase “isso não é psicanálise” é um exemplo comum desse estado mental. Quando ele aparece devemos considerar simultaneamente o grupo interno, a configuração edípica que está presente, e fazer a conexão que estabelece uma simetria interpretativa. O tipo de configuração gera a transformação específica que é observada num determinado momento. No momento seguinte tudo pode mudar. Trata-se da instabilidade psíquica inerente a qualquer sistema vivo. Muitas vezes o dizer “isso não é psicanalise” parece mais atraente do que admitir um desamparo diante desta instabilidade que nos coloca na posição do não saber.
A instabilidade explica a impossibilidade de dar interpretações corretas, mesmo para uma mente preparada para perceber esta configuração (que supostamente todos nós psicanalistas conhecemos). Eu digo “supostamente” porque ela está sempre se renovando em suas possibilidades de manifestação, pois se trata da mais pura singularidade humana que pode apresentar o desconhecido onde menos se espera.
A teoria das transformações significa seguir sempre a simetria criação e destruição de formas, e trazer o desconhecido para primeiro plano.
Recentemente, em uma jornada sobre o pensamento de Bion, apresentei um caso que tinha evidentes características da história do personagem Édipo Rei de Sófocles. Eu até conjecturei intitular o caso de reencarnação de Édipo, mas evitei saturar a experiência descrita com esse título. Preferi intitular o trabalho de “Sortilégio”, palavra usada por Bion em um de seus seminários na Tavistock Clinic, sobre observação clínica.
O termo “sortilégio” com seus múltiplos significados foi utilizado com o sentido de uma espécie de impressão digital psíquica que pode tanto encaminhar o destino da vida de uma pessoa, como pode ser a expressão pela qual essa pessoa é reconhecida subjetivamente como sendo ela mesma e não outra. Trata-se, portanto, da mais pura singularidade.
A questão que eu pretendi colocar é como esta característica pode ser percebida, e como o analista pode lhe dar (ou não) outro encaminhamento. Alguns dos colegas presentes reconheceram que eu estava falando sobre a pré-concepção, ou sobre “O”.
No entanto, outros relataram um sentimento de confusão e perplexidade com o caso, notadamente no início do relato clínico, que se caracterizou por eu não responder uma pergunta do paciente sobre os honorários das sessões. Não respondi nem mesmo a dos ouvintes presentes, destacando a provocação para pensar no desconhecido com o qual eu havia me deparado.
Um dos aspectos significativos do caso é o uso de drogas. Não apenas no sentido das drogas sintéticas, mas também no desenvolvimento de relações tóxicas e de “drogas” psíquicas. Destaquei, por exemplo, o excesso de otimismo levando à Alucinose. Também destaquei o uso do dinheiro como uma espécie de droga que inebria como hipótese a ser trabalhada.
No plano político, no grupo externo, vemos com frequência ações dos “narcotraficantes” do dinheiro tentando inebriar seus opositores e mesmo seus seguidores com a corrupção. Eles agem para tirar a vontade dos que podem reagir contrariamente, ou para assegurar a fidelidade cega dos que já concordam, mantendo o estado geral de onipotência. Diversos personagens do mito de Édipo fazem isso, como Tirésias, Jocasta, a Esfinge. No mito de Palinurus temos o Deus Somnus. Na Ilíada temos o canto das sereias.
Bion (1970) afirma que a toxicomania é utilizada como disfarce para a psicose, e complementa dizendo que também o uso da mentira é frequentemente justificado como um aspecto da toxicomania. Assim, psicose, mentira, uso de drogas se associam numa mente tóxica e despreparada para o contato com a vida psíquica.
O grupo familiar do paciente sempre se caracterizou pelo uso de mentiras para manter-se unido. As mentiras também pautavam a relação com a comunidade. Assim, o trajeto da pré-concepção encontrou a mentira na mente da mãe, na mente do casal, na mente da família e espalhou-se pela mente social, impedindo a ação de uma mente criativa que pudesse dar outras soluções. O sistema como um todo ficou “congelado”, e o uso do dinheiro, e do poder que lhe é inerente, contribuíram intensamente para esse resultado.
Eu mencionei este tipo de trajeto, pois é minha forma particular de entender a pré-concepção dentro da teoria da complexidade, isto é, de acordo com um looping autopoiético. Cada plano se estabelece simetricamente com seu antecedente e seu precedente. A sugestão é que quando se interpreta um dos planos se coloque o seguinte de forma simétrica.
Uma mente intoxicada com mentiras faz o sujeito sentir-se frágil e vulnerável, apesar de ter mentido para se sentir superior ao seu interlocutor (transformação em Alucinose). Os sentimentos de fragilidade e desamparo previamente existentes produzem terror e angústia que retroalimentam o sistema. Assim fragilidade e desamparo provenientes do casal de pais devem ser confrontados com onipotência que a mente materna não pode atenuar.
O paciente, mesmo após um bom tempo de análise, com frequência se queixava_ que apesar de ter descoberto as razões históricas de seu sofrimento_ não conseguia mudar. Sentia-se frustrado, pois fora informado que na psicanálise tornando consciente de aspectos de sua história que permaneciam inconscientes seu sofrimento desapareceria.
Todavia, isso acontecia por uma razão fundamental: o paciente mente para si próprio. Assim, seu desejo de colaborar com a análise, de descobrir sua história, não tem efeito se não for colocado em situação simétrica com a mentira que conta para si próprio. O maior risco das as mentiras, como mostrou Bion (1970) é que elas podem fazer com que o indivíduo se torne uma mentira ambulante. O Ser é afetado de tal forma que ele nada consegue alterar e não pode nunca chegar a uma sintonia com “O”.
Eu penso que existe uma alternativa_ de fato complexa_ na qual o analista pode mostrar que a mentira é destrutiva da vida que o paciente está levando, mas não é destrutiva da vida que ele poderia experimentar se parasse de mentir. Assim, é preciso sugerir o encontro de um limite onde ele se dê por “satisfeito” de tanta mentira e pare [4]. Pois, ao contrário dos indivíduos que fazem uso dos argumentos falsos, o mentiroso sabe que está mentindo e vive o paradoxo: sabendo que está mentindo ele pode responder quando indagado, que mente quando está mentindo – o que seria verdade – isentando-o desta forma de ser qualificado como mentiroso. Ele pode fazer com isso que qualquer ajuda sincera se torne mentirosa e, portanto, não acolhida por ele, enquanto aceita a mentira como sendo melhor do que a “verdade”.
Usando a Grade Aperfeiçoada podemos reconhecer o tipo de comunicação mentirosa que o paciente está fazendo e a que uso ela se destina como transformação. O analista através de sua interpretação_ ou intervenção_ propõe uma ligação criando um campo e estabelecendo a simetria.
O paciente acima mencionado chegou para sua primeira entrevista faltando 5 minutos para terminar o horário. Não havia muito que se pudesse dizer nesse período de tempo. Ele se justificou com o trânsito difícil (todavia, os dois pacientes anteriores testemunharam exatamente o contrário_ o que poderia ter me gerado a captação do “sortilégio”).
Quando eu mencionei que o tempo disponível para ele estava encerrado, e que só poderíamos marcar outro encontro, o paciente perguntou o valor da sessão, e eu respondi de forma algo ríspida e fora do meu habitual que “não sabia”. Posteriormente, pude perceber que esse ato estabeleceu uma conexão com a história deste paciente, repleta de elementos relacionados com o dinheiro e mentiras. Mas eu ainda não sabia nada da história desse paciente. Então o que se passou?
Neste ponto, posso fazer uma analogia com um fluxo de água que encontra uma pedra. Em volta da pedra se forma uma turbulência que pode ser descrita usando o modelo espiral de experiências históricas. Em que nível ou ponto da espiral eu me encontro?
O eixo horizontal da Grade relativo ao início e fim da transformação se reflete na forma como se relaciona a transformação do analista com a transformação do paciente. Como consequência do campo formado, temos a experiência (“O”). A experiência (“O”) depende do relacionamento entre as concepções e conceitos que formam a ligação.
Um dos participantes do grupo que escutava a apresentação do caso percebeu_ com razão_ a conexão que pode ser feita entre o valor monetário da sessão e o valor emocional da mesma, sendo o dinheiro uma analogia segura para quem deseja escapar dessa discussão. Como não dei o preço da sessão, criou-se um hiato revelador da mentira que o paciente expressou ao afirmar seu poder econômico. Ele disse que dinheiro não lhe era problema_ pois tinha muito dinheiro_ mas isso também pode ser chamado de uma mentira, deste modo dei outro sentido ao assinalar que seria preciso descobrir que o preço não vai garantir o valor emocional da sessão e que não depende do poder econômico. Tratar-se-ia do meu preço concreto da sessão como analista, mas o valor emocional é outra questão que não pode ser obtida pelo preço da sessão.
Se o paciente está mentindo que o dinheiro não traz problemas para ele, isso não é o mesmo problema que ter muito dinheiro. Tornou-se um problema o dinheiro a partir do momento que se conectava a uma história de mentiras. Como não dei o preço da sessão emergiu o hiato entre verdade e história. Quanto maior esse hiato, menos o paciente pode ser ele mesmo e mais ele pode ser uma mentira. A simetria pode ser colocada entre Ser e mentira.
Em diversos trabalhos, tenho tentado esclarecer que o elemento básico da psicanálise_ listado na primeira Grade_ a Hipótese definitória (Bion, 1963,1965, 1975) ao sustentar a escolha da possibilidade psicanálise, escolhe não escolher todas as outras possibilidades que representam expectativas do paciente, e assim introduz frustração. Frustração é um termo complexo, pode significar muitas coisas. Na Grade Aperfeiçoada ele não aparece, o que não invalida sua presença. Afinal, trata-se da descrição do encontro entre duas pessoas, que são diferentes, e isso é suficiente para introduzir a frustração de que o Outro é sempre Não-Eu.
Na Grade Avançada, no eixo vertical, o elemento inicial é T de transformação. Isso significa que a psicanálise vai inserindo uma crescente complexidade nos elementos que revela para o paciente em contato com sua realidade psíquica.
A aceitação da complexidade é o reconhecimento e o acolhimento de contradições, de ideias que não podem ser conciliadas, a menos que sejam camufladas por uma visão eufórica do mundo sintonizada com objetos simples, consumismo, simulacros, possessividade, e ilusionismo político.
A complexidade descobre possibilidades da ordem do mais improvável, por exemplo, formular algo que no nosso universo escapa ao tempo e ao espaço, mas isso não anula o fato de que_ ao mesmo tempo_ não podemos escapar dessas dimensões. Não podemos reconciliar as duas ideias, a menos que estejamos num estado psicótico. Não é esse o objetivo.
O caso apresentou um problema que é sempre importante de ser avaliado: o grau de contato com a realidade e o grau de dificuldade quando a mesma é o próprio estado mental. Sugiro que qualquer paciente pode apresentar esse fato em algum momento: um fato complexo. Ou seja, traços inquietantes do emaranhando, do inextricável, do inefável, da desordem, da ambiguidade, da incerteza.
A situação aparece com frequência em pacientes que comunicam fatos que parecem distintos do que se pode esperar de uma análise. Parece que são fatos muito corriqueiros que funcionam como coisas que não são aproveitáveis para uma interpretação ou ligação simbólica. Elas parecem coisas muito concretas, sem possibilidade de ligação simbólica, e quando essa ligação é feita causa uma turbulência que faz com que pareça algo que não pode ser utilizada pelo paciente. Frequentemente isso aparece em pacientes que falam sem parar na sessão, muitas vezes nem se dão conta que o analista está lhes escutando. Um colega, de forma anedótica, diz que o analista pode dar uma volta lá fora que o paciente nem vai notar. Mas entendo que esse fluxo visa não encontrar nenhuma pedra que organiza uma turbulência.
Recentemente um paciente me perguntou se podia me pagar as sessões do mês em dólar americano. Eu lhe indaguei se haveria alguma diferença pagar com a moeda de outro país. Ele me explicou que estava no “vermelho” na conta bancária e que por isso me pagaria em “cash” dólar, que tinha em casa. O elemento importante é o paciente ter me colocado num campo entre dois idiomas, duas moedas. Sendo que um lado estava vazio, mas o outro lado estaria cheio?
Como esse paciente está passando por um período de dificuldades financeiras, eu concordei em fazer uma redução temporária dos honorários. Mas esse subsídio é sempre arriscado e me pareceu que ele diversas vezes sentiu que tinha que complementar o pagamento com algo a mais. Esse algo a mais também apareceu na recaída em certos problemas de sua vida. A recaída, como hipótese, seria o pagamento complementar.
Imaginei que ele poderia estar se referindo a uma espécie de falta de recursos “locais”, ou seja, recursos psíquicos que poderiam ser usados na sessão. Quando lhe disse que ele me pagava em “moeda estrangeira”, talvez para me colocar a distância dos problemas locais da sessão, o paciente reagiu à interpretação, recriminando-me com ódio pela distância que minha interpretação tinha do assunto concreto que ele havia colocado. Ele nem mesmo me deu tempo de eu complementar a interpretação, pois eu ia dizer ainda que me colocava próximo de algo turbulento. O que ele descobriu de tão frustrante?
Um bebê pode descobrir uma dor de estômago por causa de sua fome, ou sentir terror pelo não-seio, ou ansiedade pelo leite que não satisfaz, ou defrontar-se com sua dor psíquica por inveja. Em geral, essas descobertas são inevitáveis, mas existem pessoas que não toleram a dor e a frustração (ou nas quais a dor e a frustração são intoleráveis). Elas sentem a dor, mas não a sofrem e por isso não podem descobri-la. O fato aparentemente concreto e trivial do pagamento das sessões pode trazer à tona uma série de elementos complexos, basta que o analista faça uma ligação que revela os acontecimentos dolorosos. Além disso, temos o desdobramento dessas revelações. A Grade Avançada pode auxiliar na avaliação de elementos dessas transformações.
A situação é difícil, e depende da capacidade imaginativa do analista que pode conjecturar como seria se o paciente se permitisse sofrer a dor e o que ele descobriria a seu respeito caso tivesse essa capacidade. No entender do paciente ele descobriu que o analista diz coisas que não tem nada a ver com ele. A transformação do analista não acompanha a do paciente ou vice-versa. Ainda assim é a experiência (O). Temos T------ -> O, que em algum ponto ficou estancada, mas mesmo assim tem o seu valor se puder ser aproveitada.
Bion (1975) destaca que o único material que temos para estudar é a personalidade do paciente, e que também pode nos estudar, sendo livre para sair do consultório se assim o decidir e quando decidir. Diante disso temos a questão: Como engajar o paciente numa conversa analítica que seja tolerável? Ou que seja aproveitável? O que fazer com o paciente que sente ser mais seguro não vir para a sessão onde corre o perigo de descobrir algo sobre si mesmo?
O psicanalista, obviamente, não possui os recursos do pintor, do escultor e do músico, por isso tem dificuldades adicionais que os artistas não possuem. Mas sua atividade continua requerendo ser exercida com alguma arte. Existe a arte da psicanálise?
Se aceitamos que tanto a arte como o pensar são necessários à nossa sobrevivência psíquica, seria possível falar da arte do pensar psicanalítico. Isso em Bion está representado por um emaranhado no qual é impossível separar a arte, o pensar da psicanálise, a física quântica, e a matemática. Esta relação entre disciplinas distintas faz parte da teoria do Pensar, cuja proposta podemos resumir na seguinte frase: vamos tentar pensar de forma diferente sobre a psicanálise, nem que seja por um minuto. Vamos ousar perturbar o Universo.
Max Planck, em 1900, criou uma teoria dos quanta, onde afirma que a energia radiante tem, como matéria, uma estrutura descontínua; não podendo existir senão sob a forma de fragmentos, ou quanta, de valor hv, onde h é uma constante universal de valor 6,626 x 10 elevado a -34 J/s e v a frequência da radiação.
Werner Heisenberg [5], usando a constante de Planck (h), criou o Princípio da Incerteza que colocou na fórmula: △ x. △ p ≥ h/2.
Ele afirma que na observação existe uma impossibilidade de observarmos a totalidade do fenômeno. Por exemplo, não se pode experimentalmente determinar de forma simultânea o valor exato de um componente do momento px de uma partícula e também o valor exato da coordenada x correspondente. A precisão de uma medida está limitada pelo processo de medida em si. O observador “psicologicamente” altera o fato observado, o que torna toda observação incerta.
Se considerarmos a aplicação resultante deste tipo de limitação, podemos supor que a observação analítica “matematicamente” também padece de incompletude.
Um indivíduo preso a questões financeiras pode entende-las como transitórias, mas pode sentir por conta de sua história pessoal que elas o aprisionam. Trata-se de um tipo de ansiedade diferente; ela está mais próxima da privação, o que é bem mais assustador. Ele pode sentir-se aterrorizado em uma situação onde essa dificuldade não existe, pois significa que o objeto perfeito ao qual está ligado_ enquanto existem dificuldades_ foi destruído.
Spinoza, em seu tratado sobre Ética [6], diz que um homem livre pensa em tudo menos na morte, e sua sabedoria é uma meditação não sobre a morte, mas sobre a vida. O paciente muito ansioso com sua restrição tende a ficar meditando sobre a morte, e por isso sentiu-se aprisionado em minha interpretação, e que era apenas uma indagação sobre a finitude de recursos. Foi o que pude dizer. Afinal, também sou limitado como ser humano e não posso suprir com onipotência e onisciência o desamparo do paciente.
No conto “O Imortal”, de Jorge Luís Borges [7], o personagem chega à cidade dos Imortais, e decide entrar no palácio_ por ser a construção principal_ onde percebe que apesar de muito apuro arquitetônico, tudo era cinzento, e nada parecia ter sentido ou finalidade. Ele viu quartos sem janela, corredores que não vão a lugar algum, escadas sem acesso a andares _ mas, em cada detalhe, havia um vestígio, uma longínqua lembrança de formas conhecidas e concebidas por seres mortais. Na vida humana, tudo conta, porque os seres humanos são mortais, e sabem disso. As cores da vida atestam este fato. Mas existem estados mentais que tiram essas cores, tornam tudo cinzento.
O espaço entre Eu e Outro é onde se encontra o berço da ética e todo o alimento que o Ser Ético necessita para se manter vivo: trata-se do silencioso desafio do Outro e, como analista, trata-se da minha dedicada, porém desprendida, responsabilidade.
A parte psicótica da personalidade tende sempre a diminuir esse espaço, exigindo não a minha responsabilidade, mas que eu deixe de ser ético e deixe de ser eu mesmo. Enfim, exige que nos distanciemos ou até desistamos de ser quem somos para submergirmos na Alucinose. A Alucinose nos conduz_ ao mesmo tempo_ ao equívoco, ao mal-entendido, ao arremedo, ao simulacro, ao falso, ao mentiroso. Sendo essa última característica a que predomina.
Em contrapartida, se trabalhamos com a honestidade (sinceridade) como base da vida mental, ela vai criando uma barreira de contato constituída das concepções de palavra empenhada, a palavra sincera que gera o caráter, que em sucessão gera a integridade, a coragem, a compaixão, o respeito a vida e o respeito a verdade. Este último valor ético se reflete como reforço sobre a escolha inicial, criando um argumento circular. A barreira de contato, antes do mais, é um continente.
Cada valor ético gera outro valor. Quando são atacados, de alguma forma, podemos imaginar uma analogia com dominós enfileirados: quando se derruba um derruba-se o resto. Uma barreira de contato aperfeiçoada é expressão do vínculo K (Bion, 1962a). Os conhecimentos que ela produz tendem a produzir o campo K----- -> O.
Uma paciente me traz questões de sua vida íntima, mas afirma que por eu ser um analista do sexo masculino existem coisas que se passam com ela que não posso entende-la. Mas não consegue me explicar o que são essas coisas. Diz que numa análise anterior, com uma analista mulher, era muito boom, pois esta lhe dava conselhos. Mas, contraditoriamente, diz que esses conselhos são típicos de uma revista feminina.
Eu digo que ela está me dizendo que pode adquirir em qualquer banca de revistas, sem compromisso algum com a realidade da análise e com a verdade. Mais ainda, indago se poderia ser um compromisso com o consumo, com uma espécie de possessividade em que o objeto é constantemente mau até que seja colocado para dentro e controlado?
Como analista estou ali na sessão, em primeiro lugar, com minha responsabilidade de ser analista, e não para ser um homem ou uma mulher, por isso a questão não é de gênero, mas de generalização. Eis como a parte psicótica da personalidade pode funcionar sutilmente. A paciente cegamente generalizou sobre o gênero. A generalização significa também uma particularização decrescente, uma perda dos detalhes e dos sentimentos que os acompanham.
Seria também uma generalização se eu disser que existe a dificuldade das mulheres de existirem como mulheres? O fato bio-social-histórico de que são condicionadas por uma imagem de mãe pode leva-las a um lugar de equívocos. Essa paciente com frequência relata erros em seu trabalho por assumir inconscientemente esse papel de mãe. Ela também vem cometendo muitos enganos na sua vida. Reconhece isso, sente-se infeliz, e um tanto desesperada por não encontrar a saída.
Eu saliento que a alternativa seria produzir outra coisa_ que não seja a mãe onipotente e poderosa capaz de tudo entender_ para que possa existir uma conversa sobre o desamparo existente entre homem e mulher. Todavia, entre analista e paciente, a questão pode ser colocada da seguinte forma: o que pode impedir a parte criativa do par analítico? Seriam sentimentos simétricos de onipotência e desamparo gerados pela busca de um saber onisciente que tudo pode solucionar?
A paciente não está errada quando faz associações para explicar que a relação mãe e filha é sempre difícil por conta da “confusão” (identificação projetiva) que apaga as diferenças entre ambas. Então a filha tem dificuldade de existir como filha, pois é condicionada a ser como a mãe, e a mãe também deseja isso_ o que complica a situação.
A identificação projetiva excessiva_ gerada por possessividade e voracidade_ diminui o espaço das diferenças entre a mãe e a filha, e diversos problemas pela perda do espaço ético do Ser podem aparecer. Muitas vezes a solução dada para o que não se pode ser surge pelo que se pode parecer. A fórmula seria: Não Sou, mas me pareço.
Essa paciente tem uma tendência a usar drogas quando entra em conflito com o marido, e o uso de drogas justifica a infidelidade conjugal que aparece nessas situações. Ela está aprisionada no ter que existir apenas como uma mãe, e ter que produzir a vida. Todavia, isso parece dispensá-la de produzir aquilo que seria uma posição de mulher com seu marido. Ela imagina que se torna mulher nas relações extraconjugais, mas, contraditoriamente, se queixa de que é vista como objeto, pois os homens a usam. Tentou se relacionar com mulheres e sentiu o mesmo. A busca de uma mente onipotente que não está lá causa a confusão mental. A dor é ainda maior quando se chega a essa situação de que seria preferível a mentira do que buscar a verdade. É o que podemos chamar de fundo do poço da Alucinose.
Apesar de todo o avanço intelectual e profissional que essa paciente possui sente-se submissa ao marido que exige dela a posição de mãe, o que significa abrir mão de trabalho e desenvolvimento profissional para acompanha-lo. O fato de contentar-se com essa possibilidade a torna cúmplice da fantasia narcísica [8] masculina.
A questão da diferença entre os sexos pode também ser pensada em termos de relações de poder_ que não pertence a nenhum dos sexos_ e que não se trata exatamente de sexo, mas de direitos e de ética. Pode significar discutir sobre a falta dos direitos, mas isso é diferente de usar os direitos para criar conflitos com as pessoas. O espaço é complexo, pois precisa que contradições sejam toleradas, por um tempo suficiente, até ser possível tomar decisões que farão a diferença. Existem decisões que não fazem a mínima diferença. Tolerar o tempo, leva a tolerar causas, e essas criam espaço e responsabilidade.
A paciente quando se submete às demandas narcísicas de poder do marido perde a capacidade para o prazer, pois não consegue sofrer sua dor pela frustração. Nas relações sexuais, o orgasmo desaparece com o conflito_ pois, exige momentos de inconsciência, de “sair fora de si”, uma experiência que se torna ameaçadora para quem está com profunda desconfiança que esse estado a colocará sob o domínio da parte psicótica da personalidade. Experiências do início da vida, uma mãe extremamente onipotente, está vinculada a fantasia de que vai enlouquecer se tiver orgasmo ou sair de si. Experiências da primeira infância são inevitavelmente evocadas durante a experiência sexual. Assim, existe muito mais continuidade entre a vida mental da primeira infância e o ato sexual adulto do que as diferenças físicas permitem perceber.
Outro paciente diz que se sente “compelido a buscar pornografia”. Prefere assistir filmes pornográficos e se masturbar, do que ter uma relação com a esposa_ que diz ser uma mulher queixosa e fria. Diz, jocosamente, que ela não gosta de comer nada, pois tem anorexia nervosa sexual.
A pornografia participa intensamente da cultura popular atual. As mídias em geral vêm tornando os termos exibicionismo e voyeurismo praticamente obsoletos. Quem conhece o Carnaval do Brasil tem uma prova viva desse fato. A antiga vivência de transgressão, através da qual o erotismo é gerado, foi abolida com a banalidade das amostras pornográficas. Trata-se da banalidade do sexo. Os filmes mostram como é “fácil” fazer sexo. Parece que não se precisa de nada, nenhuma conversa, nenhuma troca, apenas de um desejo que surge quando se quer que surja. Mas quando não surge pode transformar-se numa situação aterrorizante.
Esse paciente vive uma espécie de transgressão da transgressão, a pornografia que não lhe é mais proibida _ como quando era adolescente_ precisa ser proibida por ele mesmo. Ele fantasia que exclui a esposa do ato sexual e “transgride” ao se dedicar a masturbação em segredo promovida pela pornografia. Podemos chamar isso de masturbação mental causada por uma dissociação crônica consequente a falhas primitivas da reverie? Como mostrar a cesura entre o estado mental infantil e os argumentos lógicos do adulto?
A masturbação e a pornografia podem representar_ uma compensação onipotente importante para as frustrações inevitáveis vinculadas ao encontro com o Outro. O outro é sempre o Não-Eu, o limite para as fantasias onipotentes estimuladas pela pornografia como compensação para os sentimentos de impotência e desespero (desamparo) devido a falhas das relações iniciais.
A sexualidade fantasiada na masturbação traduz a maneira pela qual as concepções se relacionam entre si. Trata-se de uma espécie de codificação onírica, por meio de roteiros visuais imaginativos que traduzem e triunfam sobre as memórias de relações muito primitivas_ especialmente as decorrentes de falhas da reverie. O paciente se queixa que sua mulher gosta de vê-lo sofrer sem ter sexo com ela. Mas, felizmente, diz ele, na pornografia isso não ocorre, ele está livre.
O paciente tinha fantasias sadomasoquistas em que uma mulher o amarrava e o obrigava a lambê-la nos genitais e nádegas após ter feito necessidades fisiológicas. As fantasias estavam traduzindo uma mãe cruel e rígida com o bebê, pegando-o sem carinho para alimentar, obrigando-o a mamar nas nádegas/seios, coloridas por um ódio malcheiroso da evacuação mental da frustração e consequente desamparo.
Em geral, esse paciente, através da pornografia sadomasoquista_ que afirma nunca se cansar de ver_ pode entrar pela fantasia no corpo de uma mulher sem ser rejeitado; pois ela sustenta “sofrer” o prazer da penetração sádica. A “liberdade” da identificação projetiva_ para quem se sente aprisionado na mente do outro_ suga o paciente para dentro da mitologia da repetição. A mitologia pornográfica é sempre um quebra-cabeças que mostra como a onipotência e a onisciência se realizam no mundo externo. O destino trágico edípico, a rota de sempre, para quem vive de boas mentiras.
A identificação projetiva produz confusão e gera a dependência de alguém para diferenciar o que é bonito do feio, o que é seguro do perigoso. Esse alguém é também sentido como cruel, uma vez que pode transformar urina em alimento, e sexo em algo perigoso. A crueldade pode ser a expressão de uma verdade sexual sem amor.
Green (1981) nomeia o complexo de Édipo de complexo da dupla diferença: conjugando em seus efeitos as vicissitudes da diferença dos sexos e da diferença das gerações. Daí seu alcance, ao mesmo tempo, estrutural e histórico para a organização da sexualidade humana.
Bion (1957) mostrou a complexidade do Édipo como uma composição de vários aspectos em que interagem as partes psicóticas e não-psicóticas da personalidade, sendo a sexualidade o aspecto periférico de uma questão mais central que é a questão metafísica da Verdade. Desta forma, graus de distorção da sexualidade não podem ser entendidos sem que se possa acompanha os graus correspondentes de afastamento da Verdade. A verdade absoluta não é acessível; o que se chama de verdade é apenas um discurso que surge em função dessa impossibilidade.
Esse paciente fala sem pausas nas sessões, como se tivesse tentando fazer com que eu não pudesse dizer nada. Quando digo algo ele de imediato critica minha interpretação dizendo que ela está sendo por demais “freudiana”.
Curioso como alguém que não é da área possa dizer tal coisa.
Eu digo ao paciente que não posso negar que minha interpretação é limitada, e como falo em linguagem comum, isso a torna ainda mais incompleta, mas, por outro lado, fica em aberto para ele dizer algo, ainda que seja descrever que se trata de uma falsa análise.
O paciente replicou: “eu estava dizendo que ele era um falso”.
Eu lhe indaguei se ele estaria sendo poderoso e onisciente para me induzir ao erro ou se poderia ser qualificado como outra coisa além da posição cruel e arbitrária.
Ele me diz que a crueldade dos analistas aparece camuflada de uma teoria que justifica uma interpretação. E diz que "o que eu fiz foi mesmo freudiano, pois cortou sua possibilidade de me odiar por dar interpretações sofisticadas”.
Certamente que não cabe discutir que ele ouviu dizer o que seria a interpretação freudiana, por isso minha questão foi: Por que ele precisa me classificar? A onipotência da classificação generaliza e nos enquadra em um sistema moral. Eu digo: penso que obviamente a total neutralidade é impossível na análise, mas podemos tirar proveito de qualquer coisa que nos faz diferentes um do outro. Digo ainda que, no final das contas, numa sessão de análise, ele pode me observar assim como ele me permitiu observá-lo. Trata-se de uma via de mão dupla.
Ele diz que sabe que tento provar a ele as teorias da psicanálise, mas que não sei nada sobre o que se passa com ele fora das sessões. Um tanto óbvio que não sei o que se passa a menos que ele me diga. Mas essa obviedade tem outra intenção. A intenção de ser uma pedra de tropeço, e que em grego se chama “Skandaló ”_criar conflito. Note-se que o espaço é uma questão.
Certamente que em qualquer análise a dialética dentro e fora, continente e conteúdo, deve ser ressaltada e precisa ser mantida. Mas a transformação em Alucinose, pode ocorrer mesmo em pessoas que são sofisticadas intelectualmente e conhecem muito sobre psicanálise. Aliás este é um problema muito atual. Tem muita gente supostamente informada sobre psicanálise. Mas, e o que dizer sobre fazer análise ao invés de apenas saber acerca?
Penso que se a Alucinose não for interpretada em todas as suas camadas e características, a análise pode, de fato, se transformar num exercício de domínio, onde o analista é percebido como supostamente onisciente, e todas as palavras que ele usa sobre este modelo da diferença, como por exemplo entre fazer e saber sobre, podem tornar-se alvo de uma mentira que afeta o Ser do paciente. Se o paciente chega a ser uma mentira, dificilmente ele vai deixar de usar o óbvio como a mentira do não-saber.
A Alucinose está também presente numa segunda camada de provar que “ações que valem mais do que as palavras” (Bion, 1965) _ o paciente fora das sessões dizendo o óbvio que neste espaço eu nada sei sobre ele. Este adágio antecede o ato final de provar que a mentira é melhor do que a verdade: o fundo do poço das possibilidades de análise, se não ficarmos atentos a isso.
Eu digo que não importa como uma pessoa se diferencie teoricamente, mas se ela fala em nome geral da psicanálise, ou em nome de qualquer autor_ isso é uma ação pura e simples, uma deturpação_ semelhante à religião na qual sempre tem sempre alguém quem fala em nome de Deus. Indago ainda por que eu deveria saber sobre psicanálise e com isso achando que tenho que provar algo? Não seria uma contradição dentro do que ele mesmo me havia dito?
Esse é um tipo de paciente que Bion (1994), certa vez, mencionou que faz o analista se sentir pior analista no final da sessão do que era no início. Se tomarmos isso como a única coisa que o paciente pode fazer, digamos que ele está nos presenteando com essa tarefa quase impossível de ficar limpando o desamparo do bebê e, assim que o bebê ficou limpo, logo em seguida ele regurgita e defeca, e novamente precisa que isso seja realizado. Um trabalho aparentemente insano de relacionar a restrição de lidar com o desamparo através da onipotência.
Diante deste quadro o que se pode fazer é tentar tirar proveito desse mau negócio que sempre envolve as vicissitudes e insalubridades da profissão. Requer trabalhar com a cesura que Bion (1975) aponta ao citar o poeta Paul Valery: Aquele que escreve todo um poema numa noite de febre, não é um delirante febril, mas sim um sábio calculista, quase um algebrista, aos serviços de um sonhador refinado”.
A “matemática” do algebrista, do sábio calculista, diz Bion (1970) que se refere a uma busca de estar de acordo com “O”_ a realidade psíquica viva. O poeta quando se aproxima do desamparo à beira do caos tem o critério para entrar em acordo com sua sabedoria matemática e a compartilha com o indivíduo imaginativo. Daí surge o poema, a linguagem de Êxito.
Diz Bion (1970): É difícil conceber uma análise de resultado satisfatório sem que o analisando se reconcilie ou fique de acordo consigo mesmo. Assim como é tentador supor que tal resultado ou o desejo de tal resultado proporcione critério para relevância.
Esta frase me inspirou a construir uma Grade Emocional.
Para que possamos colaborar com o paciente é necessário levar em conta as emoções que ocorrem no processo analítico.
A impossibilidade de comunicação sem frustração é tão grande que faz esquecer a natureza dessa frustração. Muita gente sabe que se trata de fenômeno transitório, experimentado em poucas ocasiões. No entanto, esse fenômeno ressalta nos grupos, e tanto maior se torna quanto maior é o grupo.
Grupos muito grandes costumam apresentar fenômenos de qualidade psicótica, destacando-se a questão do mimetismo e da eleição de um líder que segue padrões parecidos com a psicose. No entanto, não podemos qualificar uma nação de psicótica, mas muitas vezes somos tentados a fazer isso.
A questão tem conexões com a concretude da realidade psíquica e a impossibilidade de um indivíduo receber totalmente a comunicação de um outro, por causa da diferença no Self de cada um, diferença intangível, o Não-Eu incognoscível e incomunicável. Mas a comunicação se faz querendo ou não através da identificação projetiva.
O problema tem a ver com a questão de espaço mental vivenciado no grupo. O indivíduo não pode conter os impulsos próprios de um par e o par não pode conter todos os fatos inerentes ao grupo. O problema psicanalítico é o problema do desenvolvimento e sua solução harmoniosa no relacionamento entre continente e conteúdo, repetida no indivíduo, no par e finalmente no grupo (intra e extra psiquicamente).
Vamos então descrever e tentar entender esse relacionamento como uma configuração que aparece constantemente na psicanálise. Embora possa recorrer a formulações que se parecem com descrições de eventos na psicanálise ou na História, não vamos reivindicar para elas o status de narrativa histórica.
Elas são o que Bion denominou de categoria C da Grade, ou seja, descrições feitas com imagens provenientes da experiência ou a experiência organizada para propósitos de interpretação sem que o assunto a ser esclarecido fique saturado por uma falsa impressão de conhecimento definitivo sobre um tema.
As interpretações psicanalíticas devem ser dadas apenas pelo psicanalista no decorrer de seu trabalho quando os fatos que devem ser interpretados estão disponíveis e quando apenas ele, psicanalista, está disponível para os fatos. Mas como o analista se torna disponível para os fatos. Como encarar o que se pode chamar de evidência?
Vou começar esclarecendo esse fato descrevendo um relato de Donald Meltzer em 1954, quando comunicou aos seus pares em NY que iria para Londres se analisar e estudar com Melanie Klein. Ele escutou de uma famosa analista da época (Margareth Mahler) algo assim: “ Bom; o trabalho de Melanie Klein só tem um problema. É que não dá para acreditar em história de criança”.
Note-se na frase uma desqualificação do trabalho de Klein, por parte de alguém que provavelmente nunca a leu com profundidade, se é que a leu superficialmente.
Claro que não dá para acreditar que as histórias de criança são relatos fidedignos de fatos do mundo externo. Mas quem é que relata histórias que são absolutamente fidedignas? Todos relatamos com nossa individualidade, nosso viés pessoal. E que importância tem isso? Não podemos ser iguais. Somos seres humanos lidando com uma área de difícil compreensão e alta complexidade como é o caso da psicanálise.
Na tentativa de dividir conceitos com nossos colegas psicanalistas muitas vezes ficamos mais afastados de quem simpatiza com nossas ideias do que daqueles que a elas se opõem. Mas parar contornar algumas dificuldades podemos tentar criar uma Grade de Emoções. Como se verá elas conferem um caráter de precisão à percepção dos fatos de uma sessão.
Por outro lado, as crianças revelam coisas que só os sonhos revelam– e é necessário acreditar que essas coisas existem para poder trabalhar com o referencial kleiniano. Em outras palavras, é preciso praticar uma certa credulidade, uma ingenuidade sadia, acerca da concretude da realidade psíquica, isto é, conceber o mundo da realidade psíquica não simplesmente como fantasias ou imagos, mas como coisas que realmente acontecem e que essas coisas moldam nossa vida e nossas relações com o mundo externo.
Essa concepção foi expandida por Bion em sua percepção de que a identificação projetiva não era simplesmente uma fantasia inconsciente, mas que algo concreto acontecia, ou seja, tratava-se do processo básico de comunicação entre as pessoas.
Em resumo, como a identificação projetiva não se detém com nada, a não ser no objeto a qual se destina, de acordo com Bion podemos dizer que as pessoas se comunicam querendo ou não; o que vão fazer com a comunicação recebida é outra coisa, pois a resposta depende de vários fatores que Bion descreve em sua teoria do Pensar através do estatuto da reverie/ função alfa.
Essa mediação sugere muito o papel do superego na vida mental, tal como descrevera Freud. Porém é uma forma totalmente inédita de conceber o superego. Uma forma diferente daquele superego freudiano descrito como burro, rude, imperativo e muitas vezes cruel. Certamente que na clínica, podemos inferir que quando um paciente está se referindo a algum personagem rude, grosseiro, etc, presente em sua vida de relações, ele está se referindo ao superego, mas a ideia corre o risco de perder a especificidade clínica, caindo numa dessas interpretações rotineiras.
Em outras palavras, a concepção de um processo básico de comunicação, como se fosse o leito de rio para os símbolos se instalarem no fluxo da vida, permitiu que a teoria de Bion acrescentasse uma dimensão surpreendente quanto ao papel do superego na vida das pessoas.
Vou dar um rápido exemplo clínico para ser discutido. Uma paciente chega à sessão dizendo de forma assertiva que leu um livro de onde tirou lições importantes que muitas sessões de análise não seriam capazes de atingir. O sentimento que está presente aparentemente é de uma satisfação que ocorre em situações de triunfo. Como se dissesse, venci a minha necessidade de um analista. Mas então por que de certa forma odiar essa dependência? O ódio não aparece, mas aparece o que se pode chamar de menor ódio, que tentaremos descrever mais adiante como sendo a hipocrisia. Lembro que apalavra hipócrita vem do grego e significa “ator”, assim uma hipótese pode ser levantada. Uma grade emocional nos permitiria ver a expansão deste sentimento após a sessão de análise, e tendo sido enfrentadas as interpretações.
Podemos discutir a seguinte hipótese: a identificação projetiva faz as funções analíticas serem atribuídas ao objeto-livro, que se torna porta-voz da verdade e cria uma grandiosidade de saber.
Do ponto de vista clínico é essencial lidar com essa grandiosidade, o que significa enfraquece-la com interpretações que possam dar uma visão da alienação que decorre da identificação projetiva. O que podemos desenvolver após a sessão?
A paciente através da identificação projetiva se isola num mundo fechado sem se dar conta. Mas comunicou isso colocando o analista na posição de incapaz de fornecer o necessário para atende-la, inclusive pelo menos H. O “fato” se abre para muitas linhas de investigação. Qualquer que seja a linha ela será incompleta necessitando de outro vértice para complementá-la, e assim sucessivamente, pois o novo vértice ao introduzir uma nova visão ainda será incompleto necessitando, portanto, de um novo vértice.
Podemos dizer isso de outra forma. O vértice inicial é um continente de “fatos” que passa a ser conteúdo no novo vértice, assim o novo vértice-continente deve reconhecer o anterior através do que se pode chamar de invariantes. Mas, por mais que essas sejam identificadas surgiram variáveis que levam o processo para o desconhecido. São continuidades que se estabelecem onde parece haver quebras e vice-versa, quebras que se estabelecem onde parece haver continuidades.
Bion descreveu um espectro de superegos, que funciona de acordo com as concepções e conceitos presentes em determinadas incidências do espectro narcisismo/social-ismo (que é o aspecto visualizável do objeto psicanalítico de Bion). Todavia, ele apenas ressaltou a existência de dois tipos: o superego assassino, no lado narcísico do espectro, e a consciência social, no lado oposto.
O fato de se tratar de um espectro permite uma Infinitude de descrições. Eu mesmo descrevi no espectro do narcisismo o superego ladrão, o contrabandista, o traficante, o doutrinador, o político. Uma área muito perigosa para ao analista.
A teoria do pensar deu proeminência ao papel do pensamento no desenvolvimento humano, no sentido não apenas de examinar e resolver conflitos emocionais, mas de criar e buscar significados que possibilitem a mente viver criativamente num mundo simbólico _ e não simplesmente adaptar-se ao mundo externo tal como o encontra.
Nisso Bion difere profundamente do modelo freudiano que nesse ponto é um modelo essencialmente de adaptação. A tese do ego servindo a três senhores é essencialmente um modelo adaptativo. Um modelo que emergiu da biologia. O modelo de Bion emerge da matemática pura, sobretudo, das teorias de Gödel aplicadas à Física quântica com destaque para o princípio da Incerteza de Heisenberg. Esse modelo aparece em sua forma mais elaborada no texto Transformações (1965).
Bion valorizou na vida mental algo que Melanie Klein não considerava muito importante: a diferenciação entre a vida no grupo e a vida na família. Ou seja, a diferença entre a adaptação à comunidade e aos grupos desta comunidade, e a vida das relações íntimas e emocionais que, para Bion, é a área da vida onde ocorre o crescimento da personalidade.
Os grupos se comunicam e, no final da cadeia de comunicação, almejam uma solução criativa para manter a sobrevivência de sua base, que são os bebês.
Na teoria da complexidade podemos descrever aqui um looping autopoiético. O bebê busca a mente da mãe, que depende da mente do pai que se une à mãe, e por detrás do casal temos a vida mental da família, seguida pela a vida mental da comunidade, sua inserção na cultura específica, e, finalmente, a vida da mente criativa.
Este modelo segue o movimento da pré-concepção em busca de uma realização, sendo que ele em si mostra a incompletude de todos os níveis, o que nos leva a necessidade de instrumentos binoculares, reversões de perspectivas, relações continente/conteúdo, espaços multiangulares, não lineares.
Em outras palavras, o desenvolvimento da espécie humana se baseia na busca e na introdução em nossas vidas de ideias que jamais foram pensadas antes, e consequentemente em sua assimilação gradual pelos níveis de interação acima descritos no looping autopoiético. Os cientistas costumam afirmar que essas novas ideias são descobertas, mas os artistas dizem que surgem por inspiração. O fato é que ambos estão corretos e muito provavelmente a diferenciação que fazemos entre artistas e cientistas seja errônea.
Por exemplo, tomemos um conceito complexo e polêmico: a busca da felicidade. Certamente ela não se efetiva pela adaptação aos grupos, pois isso envolve o superego freudiano comandando a vida através de três senhores. A busca de felicidade se efetiva pelo desenvolvimento através da interação com pessoas e interesses no mundo externo que evoquem emoções das relações íntimas. E, mais ainda, se essas emoções alcançam uma linguagem de Êxito, capaz de ser simultaneamente um preludio para ação e uma ação em si mesma. Isso significa ser capaz de criar e se situar na faceta amorosa da vida.
A matriz da linguagem de Êxito ou uma linguagem bem-sucedida psicanaliticamente é amorosa.
Aqui entramos na questão complexa dos afetos na psicanálise. Tradicionalmente supunha-se que a questão primária era amor versus ódio, o que em Freud estava contido nos conceitos de pulsão de vida e pulsão de morte. Essa distinção foi modificada apenas superficialmente por Melanie Klein quando ela retirou o ódio do nível pulsional para chama-lo de “inveja”, e colocá-la no ego e não no Id. Isso modificou apenas superficialmente a asserção geral de que amor e ódio estão constantemente em conflito entre si. Mas supunha um acesso maior ao afeto até então inacessível. O mando dos três senhores freudianos poderia sofrer uma rebelião psicanalítica que liberava da opressão os afetos. Isso implicou no fato de quem uma melhora psicanalítica nem sempre agradava as relações familiares, pois o indivíduo passava a recusar as relações aviltantes e abusivas para sua área íntima.
Foi Bion quem propôs a primeira teoria dos afetos propriamente psicanalítica, sugerindo que as emoções antes de mais nada são o cerne da questão do desenvolvimento mental.
Em Freud, as relações emocionais são subprodutos das relações, não o cerne da questão, e excetuando que podem ser dolorosas ou agradáveis, seu significado não é importante. Freud tinha um objeto da psicanálise distinto de Bion. E podemos acrescentar que Bion tinha um paradigma distinto de Freud.
Na teoria do Pensar de Bion o significado das emoções é o cerne da questão dos processos do pensar, e pensar as emoções é exatamente a matéria prima de que é feito o desenvolvimento da personalidade.
Bion ressaltou a precisão matemática das emoções, salientando como o sentir não cabe equívoco quanto a sua identificação. Essa assertiva se deduz pela sua percepção de que as emoções cumprem na mente o papel matemático da função. Emoção é vínculo, que por sua vez é função do desenvolvimento mental. Emoções estabelecem relações unívocas, mostram a existência de conjuntos, que por sua vez mostram Infinitude e incerteza.
As relações íntimas são feitas de vínculos emocionais em que se ativam intenções e escolhas e, talvez o mais importante, nelas surgem as emoções apaixonadas que fazem parte, por exemplo, da arte, da ciência, dos vínculos bem-sucedidos em todas as áreas humanas.
No modelo de Bion não devemos confundir emoções apaixonadas com emoções violentas. Essas últimas podem ter qualquer qualidade e podem ser mais acuradamente descritas como excitação em diferentes graus, sem o rico conteúdo significativo das emoções características das relações íntimas. A mente humana produz três tipos dessa excitação que é confundida com emoção: excesso de otimismo, desespero, e excesso de pessimismo. Como a excitação não se satisfaz no simbólico e sim no corpo, ela é como uma droga, que pode gerar drogadição, tanto no sentido da própria necessidade da excitação na ausência das emoções verdadeiras, como na busca pelas drogas concretas lícitas ou ilícitas que permitem reforçar a excitação para continuar ocultando o vazio de significado. O temor de que a fonte do significado foi destruída é um temor intenso, forte demais para certas mentes suportem o fato. Por outro lado, esse temos surge pela incapacidade para tolerar a espera do tempo futuro que nos mostra um lugar vazio a ser preenchido, ou uma posição inocupada no espaço.
Ao tomar as emoções como vínculos, Bion chegou à conclusão de que não se tratava de um problema de amor versus ódio. Era um problema de emoção versus anti-emoção, ou seja, Bion descreveu a emoção negativa. Essa ideia coloca as emoções num modelo espectral. Como o modelo espectral implica em relações não-lineares, e só pode ser concebido como um sistema aberto, ele remete à complexidade como instrumento essencial para entender essas formas de relação não determinísticas, não hermenêuticas.
Tratava-se de procurar entender a devida complexidade das emoções, e resgatá-las dentro da principal teoria psicanalítica que é o complexo de Édipo, para tal precisava de um terceiro que desse sentido ao confronto emocional. As ideias de observação que tem o matemático Gödel como ponto de partida no teorema da Indecidibilidade, e no teorema do terceiro excluído, posteriormente deram origem ao princípio da Incerteza de Heisenberg. O terceiro escolhido para decidir tem sempre características transitórias, não podendo nunca ser algo definitivo, sob pena de impedir o desenvolvimento. Certamente que aqui falamos da diferença entre concepções, conceitos e as crenças e dogmas que congelam as experiências emocionais no nível da excitação decorrente de poucos símbolos.
Por isto, Bion colocou as emoções em uma forma triangular, ou seja, além de amor e ódio que tem características espectrais, ou muitas formas significativas de expressão, ele acrescentou uma dimensão tremendamente importante_ que Klein denominara de instinto epistemofílico _mas que Bion preferiu chamar de sede de conhecimento, o terceiro que decide por um momento.
O termo sede de conhecimento retira do âmbito do pensar algo que conotasse elementos pulsionais.
Com o tempo, Bion passou a falar mais em vínculo K, com todo seu poder de abstração alcançado pelo simples uso de uma letra, o mesmo ocorrendo com H, ódio, e com amor, L. A experiência emocional passou a ser traduzida por essa triangularidade que resgata o complexo de Édipo de uma forma aberta; K, L, H.
O Édipo não se dissolve, ele evolui ou involui. Posteriormente, quando Bion desenvolveu as ideias sobre mudança catastrófica, ele mostra a existência de três configurações edípicas, que seguem o modelo de evolução e involução. Comensal, simbiótico e parasitário, uma linguagem provocativa por ser proveniente da biologia, mas que subverte os conceitos biológicos, deles mantendo somente a ideia de que se trata de algo que dá suporte à vida mental e física.
Estabelecido esse modelo cabia a Bion diferenciar em cada vínculo do seu oposto, isto é, como entender o que seria o menos K, menos L, menos H?
Certamente que Bion recorreu à literatura, e isso nos faz pensar como um psicanalista como Bion deve muito à história da literatura. Sua obra suscita pensamentos sobre o que deve ser a formação em psicanálise. Como prescindir na formação de estudar arte, literatura e matemática?
Basta especular como Bion usou a poesia na constituição da teoria dos afetos. Por exemplo, o poeta Wordsworth [9] disse que “odiar a não-verdade não é o mesmo que amar a verdade”. A hipocrisia (-H) está em apenas odiar a não-verdade, odiar não-seja-la-o-que-for, mas não procurar a verdade. Isso faz com em que o ódio se confunda com amar o oposto. Tal fato está na raiz da perversão e na psicotização.
Da mesma forma, onde termina o amor não começa o ódio, mas é onde começa a indiferença e o puritanismo, que significa desprezo e oposição ao prazer e a alegria nas relações íntimas.
O próximo passo seria levar essa compreensão de experiência emocional a um dos conceitos fundamentais da psicanálise: o sonho. Como é a experiência dos vínculos nos sonhos?
Essa foi uma mudança absoluta na visão do significado da atividade do sonhar em nossa vida e no processo de desenvolvimento. Como sabemos, para Freud o sonhar era uma realização alucinatória de desejos reprimidos, simplesmente com uma função e o objetivo de possibilitar o sono e a continuidade do mesmo.
Na obra de Klein o sonho era uma fantasia inconsciente em que se manifestava a interação entre self e os objetos internos.
Mas para Bion o sonho é o pensamento, o pensamento originário. É a representação simbólica inicial do significado da experiência emocional e a pedra fundamental sobre a qual necessariamente se apoiam todos os níveis de pensamento mais elaborados, abstrações, e organizações matemáticas. O sonho constrói a vida mental.
Para dar uma maior representação a sua ideia Bion construiu a Grade, onde podemos ver uma função se desdobrar num campo em que se confrontam dois eixos: desenvolvimento e uso. Isso significa que devemos e podemos acompanhar como o pensamento amadurece ou involui de acordo com sua posição no complexo de Édipo. Os personagens no mito determinam formas de evolução distinta, cumprem funções distintas, o que fez com que Bion tivesse que estudar as transformações. Seu raciocínio inevitavelmente tinha que seguir o modelo matemático: a função requer uma análise funcional, que requer um espaço complexo (espaço de Hilbert) que por sua vez necessita do estudo das transformações e que necessita de funções.
O Édipo em Bion é ampliado para a inclusão de todos os personagens da trama de Sófocles. A Grade, qualquer que seja ela, transmite a ideia de múltiplas linhas saindo de um núcleo de mistério_ a verdade incognoscível_ para a simbolização da arte, da filosofia e da religião. Essas áreas estão descritas pelos quadrantes do objeto psicanalítico.
Esse núcleo de mistério (a complexidade) está diretamente ligado ao movimento da pré-concepção. São polos do mesmo espectro que se comunicam através das concepções e conceitos.
Dito tudo isso, posso agora expressar o modelo tridimensional de uma Grade de emoções.
Neste modelo preciso listar dois conjuntos de emoções ocorrendo simultaneamente. As emoções da experiência emocional e as emoções que constituem os vínculos negativos.
Essas emoções operam sobre o plano das concepções e conceitos, e são capazes de modifica-los no sentido do entendimento da comunicação.
REFERÊNCIAS
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Bion, W.R (1957) On Arrogance. In: Second Thoughts. Northvale: Jason Aronson Inc., 1967.
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[1] O modelo segue a ideia matemática da Transformada de Fourier que pode ser escrita da seguinte forma: T k->O (Fα) (i/v) (a/p)à K->O. Ou seja, para se obter a direção de K ->O, uma transformação analítica, será preciso integrar no campo analítico a função alfa, as invariantes e variáveis do campo analista/paciente. Uma transformada destas necessita de um espaço de Hilbert, um espaço não-linear, não euclidiano, que admite muitas hipóteses e ângulos. [2] Picasso, LP&M, tradução de Paulo Neves, Porto Alegre, 2007 [3] ibid. [4] Uma justificativa para essa interpretação sugestiva pode ser encontrada no próprio Freud. Em um texto gentilmente cedido por Cassio Rotenberg, percebe-se Freud trabalhando com um paciente no qual chama atenção que a resistência frequente (um silêncio prolongado do paciente) “estava saindo muito caro”. [5] Heisenberg, W., Physics and Philosophy: the revolution in modern Science, ed. Harper Perennial, 2007. [6] Spinoza, B., tradução de Tomaz Tadeu, editora autêntica, 2009, São Paulo. [7] Borges, Jorge Luís, O Aleph, Alianza editorial, 1999. [8] Uso narcisismo no sentido do objeto psicanalítico de Bion (1962a), isto é, a parte do espectro de concepções que vai perdendo a capacidade de fazer perguntas (–Y). [9] William Wordsworth (1770 -1850) foi o maior poeta romântico inglês que, ao lado de Samuel Taylor Coleridge, ajudou a lançar o romantismo na literatura inglesa com a publicação conjunta, em 1798, das Lyrical Ballads (“Baladas Líricas”). No prefácio das “Lyrical Ballads”, que é chamado o “manifesto” do romantismo inglês, Wordsworth chama seu poema de “experimental” e declara guerra à artificialidade da poesia inglesa do século XVIII, defendendo o uso da linguagem coloquial, da valorização do cotidiano e da simplicidade. Este prefácio é considerado a obra central do início da literatura romântica. Uma quarta e última edição das “Lyrical Ballads” foi publicada em 1805.
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